sábado, 2 de novembro de 2013

SUBSIDIOS PARA A HISTÓRIA DA CORPORAÇÃO DE PILOTOS DA BARRA DO DOURO E PORTO ARTIFICIAL DE LEIXÕES – Episódio 314

O ARRASTÃO BACALHOEIRO “JOÃO MARTINS” EM DIFICULDADES NA BARRA DO DOURO

O JOÃO MARTINS saindo a barra do Douro sob nortada fresca em 20/10/1868, precisamente no local onde se viu em apuros / Rui Amaro /.

Estou-me a recordar do arrastão bacalhoeiro Português JOÃO MARTINS, pertencente à SNAB – Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, de Lisboa, procedente dos Grandes Bancos da Terra Nova e Gronelândia e acabado de chegar à barra em 17 pés de calado, trazendo no seu bojo cerca de 18.500 quintais de bacalhau frescal destinado à seca de Lavadores, capturado naqueles bancos de pesca do noroeste do Atlântico. Aquele arrastão comportava uma equipagem de cerca de 80 homens, cujos familiares vindos de vários centros piscatórios do país, desde Ancora até Fuzeta, com enorme ansiedade os aguardavam desde manhã cedo, como era costume à chegada dos navios bacalhoeiros, junto à praia das Pastoras e ao cais da Meia Laranja.
A 20/12/1955, pelas 17h00, aquela moderna e eficiente unidade de pesca, ao demandar a barra do Douro sob corrente de águas de cheia e ronhentas, algum mar, por vezes de vaga alterosa a quebrar, que já o vinha a fustigar desde os 500 metros para lá da boia da barra, correndo a ambos os bordos, bastante vento noroeste e céus a ameaçar chuva e tempestade, sob a orientação do piloto José Fernandes Amaro Júnior, meu pai, já muito perto da boca da barra viu-se envolvido por vários andaços de mar, que lhe galgavam o convés, fazendo-o riscar na vaga e derivar a estibordo para cima do fatídico Cabeço do cabedelo da barra, banco de areia a sul, e posicionando-se um pouco de través ao mar e prestes a encalhar. Felizmente, algum tempo depois, numa manobra de autêntica perícia daquele prático, o JOÃO MARTINS consegue regressar a um dos enfiamentos da barra, marca nova do Mato pelo farolim da Cantareira. Inexplicavelmente junto da boia da Ponta do Dente, no rebaixamento das vagas, á ré, pela rabada do navio, sentiram-se algumas pancadas secas no leito da barra, originando que voltasse a desgovernar, perigosamente a estibordo sobre a restinga do Cabedelo, o que fez temer o pior, todavia conseguindo, com alguma dificuldade, meter proa a bombordo, o navio apanhando gosto às águas de cima tomou a direcção da ponta do cais Velho, contudo aquele piloto ordenou leme a estibordo, aliviando logo de seguida e dando, por vezes, mais força na máquina para melhor governar, e lá prosseguiu para montante, sempre pela beirada do cais Velho e Meia Laranja sem mais percalços, aproveitando a ravessa sem que tivesse necessidade de largar qualquer dos ferros para contrariar os estoques de água ou as terríveis ronhentas.


O NUNO FILIPE acostado a uma prancha-cais da Gafanha da Nazaré / Autor Ricardo Graça Matias - facebook BACALHOEIROS DE PORTUGAL /

Aquele navio foi dar fundo e amarrar no lugar da Arrozeira, por vante do arrastão bacalhoeiro FERNANDES LABRADOR, propriedade do mesmo armador, que entrara de véspera também em 17 pés de água e conduzido pelo piloto José Fernandes Amaro Júnior, depois do piloto-mor ter ordenado a abertura da barra à navegação, após alguns dias de cheia, a qual desbastando as areias do Cabedelo, desassoreou e alargou bastante a barra, particularmente diante da Meia-Laranja e do Touro, ficando a restinga próximo das pedras denominadas Fogamanadas, e ainda bem que a barra alargou, caso contrário, o navio tinha mesmo encalhado, e uma tragédia tinha sido consumada.
Na ocasião, que o navio estava em dificuldades, aquele prático de 56 anos de idade e 30 de serviço activo sem qualquer incidente de maior no seu currículo, só rogava à Nossa Senhora da Lapa, padroeira dos pilotos da barra e dos mareantes da barra, cuja capela se situava junto à estação de pilotos, que intercedesse a Deus para que o auxiliasse a manobrar e conduzir o JOÃO MARTINS para montante. No entanto, segundo ele me relatou, caso não conseguisse entrar no canal de navegação ou fazer-se de novo ao mar, trataria de o encalhar o mais perto do enrocamento do cais Velho, a fim de haver hipóteses de salvamento de todos os elementos a bordo e mesmo posterior recuperação do próprio navio, porque do lado sul e à hora a que se deu o incidente, com a noite a aproximar-se e a maresia a crescer, aliado à força da corrente, a qual devido à proximidade da vazante aumentaria de intensidade, teria havido uma das maiores tragédias jamais lembrada na temível barra do Douro e ainda por cima na presença dos familiares da tripulação, e de mim próprio que não sabia que a bordo vinha o meu pai, e um parente mestre redes, da Murtosa.
Pouco antes passara a barra de entrada o navio-motor Português ÁFRICA OCIDENTAL, de 72m/1.266tb, pertencente à Sociedade Geral de Comércio, Industria e Transportes, de Lisboa, vindo em 15 pés de água, sob a orientação do piloto Hermínio Gonçalves dos Reis, que também fora envolvido em grande ondulação, riscando na vaga, vendo-se por vezes o seu hélice a trabalhar fora de água, contudo passando a barra sem dificuldades de maior, salvo uma ou outra guinada já dentro do rio, devido à forte corrente que se fazia sentir, indo amarrar no ancoradouro da CUF, no lugar do Monchique.
Alguns dias passados, após o JOÃO MARTINS, já em Lisboa, ter entrado em doca seca para limpeza do fundo e fabricos, foi detectado que o cadaste e o leme estavam bastante danificados, possivelmente devido às referidas pancadas. Só a mão de Deus deve ter estado ao leme daquele arrastão bacalhoeiro!
O JOÃO MARTINS foi uma das vitimas da grande cheia de 1961/62, o qual atracado ao cais de Gaia não conseguiu suportar a força arrasadora da corrente do rio Douro, que lhe provocou o rebentamento das amarrações que o ligavam aquele cais, garrando ao sabor das águas, com os motores a trabalhar, de madrugada, todo iluminado mas sem tripulação, e saindo a barra de popa arrastando pelo fundo os ferros lançados a prumo, juntamente com outros navios, até ter sido resgatado pela sua tripulação ao largo da barra, entrando de seguida em Leixões, aparentemente sem qualquer dano.
Quando o meu pai chegou a casa por volta das 8 horas da noite e ao contar a odisseia porque tinha passado a mim e à minha mãe, não conteve as lágrimas. Ele como prático da barra sabia muito bem o drama que poderia ter ocorrido naquela malfadada barra!
JOÃO MARTINS – Arrastão clássico lateral bacalhoeiro/ imo 5172377/ 71,1m/ 1.264tb/ __nós; 07/1952 entregue pelos acreditados ENVC – Estaleiros Navais de Viana do Castelo à SNAB – Sociedade Nacional dos Armadores de Bacalhau, de Lisboa; 1982 NUNO FILIPE, António Conde & Cia., Lda., de Lisboa; 1990 RIO CABRIL, North Ladytee E.B. Marine Inc, Panamá, Bandeira de conveniência da Republica do Panamá; 2003 excluído do Lloyd’s Register of Shipping por dúvida de existência. Foi o último arrastão clássico lateral a ser construído para a frota bacalhoeira Portuguesa.
Fontes; José Fernandes Amaro Júnior; Miramar Ship Index.
Parte deste trabalho está inserido no meu livro A BARRA DA MORTE - A FOZ DO DOURO (Edições O PROGRESSO DA FOZ) ano 2006.
(Continua)
Rui Amaro

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