sábado, 15 de agosto de 2009

SUBSIDIOS PARA A HISTÓRIA DA CORPORAÇÃO DE PILOTOS DA BARRA DO DOURO E PORTO ARTIFICIAL DE LEIXÕES – Episódio 11


UMA QUESTÃO DE CALADO DE ÁGUA E MUITA PRÁTICA DO RIO NA SAIDA DO VAPOR ALEMÃO "ARION"

O vapor ARION no porto de Bremen - (c) 100 Jahare DG Neptun - colecção F. Cabral.

Narrativa textual do piloto José Fernandes Amaro Júnior, respeitante ao seu serviço de condução de saída do vapor Alemão ARION.
«A 08.01.1929, pelas 09h00, na estação de pilotos da Cantareira foi recebido um telegrama, pedindo piloto para dar saída ao vapor Alemão ARION, 87m /2.297tb, o qual após as manobras de desamarração, iria completar o seu carregamento com uma pequena parcela de carga de substâncias perigosas, diante do lugar do cais do Cavaco, ancoradouro próprio para este tipo de operações.
Chegado a bordo, às 10h30, no quadro da Alfandega, informei o comandante da melhor forma de proceder à manobra a realizar e fui dizer ao imediato para mandar arriar à popa, o cabo de arame do ancorote dos pilotos de maneira a ficar safo dos ferros do vapor Norueguês TEJO, que estava amarrado pela popa. Depois do cabo de arame liberto, mandei um remador da catraia dos pilotos ir a terra para largar um cabo de proa e indaguei do imediato acerca do calado de água e como ele ainda não tinha anotado, apressou-se a ir verificar, infelizmente da borda do vapor e pouco depois veio-me informar, que à proa marcava 14,5 pés e à popa 14,3 pés e eu tive de aceitar aqueles números, porque o imediato tem de ser um oficial bastante responsável. Entretanto, o mestre estivador veio-me dizer, que tinha terminado a carga e como tal já podia desamarrar e desandar o vapor.
Então, principiei a manobrar, porém devido ao comprimento do ARION fui desandá-lo, com o auxílio do rebocador DEODATO, ao lugar da Cruz, um pouco a montante, porque junto do quadro da Alfandega e nas duas margens estavam outros vapores amarrados, entre os quais o Norueguês TEJO e os Ingleses DRAKE e TORCELLO. Conduzi o vapor com a máquina a trabalhar devagar avante até ao dito lugar do Cavaco, diante de Massarelos e passado pouco tempo, após ter-se metido a restante carga, seguiu-se rio abaixo, a meia força avante.
Já próximo da capela do Snr dos Navegantes, o rio levava bastante corrente de água de enchente e como tal o vapor desobedecia ao leme. Então mandei dar mais força na máquina a ver se assim governava melhor mas tudo na mesma. O comandante perguntou-me se íamos passar pelo Sul ou pelo Norte da bóia da Cantareira e eu disse-lhe para meter leme pelo Norte, porque aí a corrente era mais fraca. Corrente essa, que se desenvolvia devido ao bico do Cabedelo, diante da pedra da Gamela, se encontrar muito a Norte e baseando-me na pedra da Eira, que devido à maré-alta se encontrava bastante afogada e por imensa prática sabia, que naquelas condições tinha água suficiente para o calado fornecido pelo imediato. Aliás, era um procedimento normal devido aos jeitos de água em certas circunstâncias, dependendo do calado de água dos vapores. Quando o vapor passava já diante da pedra da Eira bateu, levemente a meia-nau, por duas vezes no fundo do rio, todavia sem causar problemas de maior. Eu e o comandante ficamos bastante apreensivos e fiquei a duvidar dos valores do calado de água dados pelo imediato ou da existência de qualquer corpo estranho submerso.
Passado aquele imprevisto, o vapor seguiu a toda a força avante, a fim de governar e ao chegar perto da restinga, devido ao Cabedelo se encontrar espraiado a Norte, bateu por duas vezes com o bojo na areia e guinou direito à ponta do Dente. De imediato, ordenei leme a bombordo e quando o vapor obedeceu para esse bordo, mandei aliviar o leme, a fim de não ir bater com a popa na pedra da Forcada. O ARION saiu a barra à 12h55, rumando aos portos de Lisboa e Bremen.
Antes de desembarcar para a lancha P4, O comandante perguntou-me do motivo de eu ter conduzido o vapor pelo Norte da bóia e não pelo Sul. Lá lhe dei os esclarecimentos necessários mas também lhe disse, que em outros serviços e com o calado de água igual ao registado pelo seu imediato, calado esse, que não deveria estar certo, sempre que havia motivo para isso, fazia-o pelo Norte da bóia. Porque razão teria de deixar de passar agora!? Já a bordo da lancha e não conformado com o incidente, tentei ratificar o calado, o que não me foi possível devido à ondulação. Chegado a terra fui dar conhecimento do sucedido ao piloto-mor Francisco Rodrigues Brandão, que não estranhou da manobra efectuada com o ARION. No entanto, disse-me que não poderia deixar de comunicar à capitania.
Passados alguns dias, fui chamado ao capitão do porto e foi também o piloto-mor, para dar o seu parecer. O piloto-mor entrou para o gabinete do oficial adjunto da capitania e passado algum tempo saiu e disse-me vamos embora, porque já não é preciso prestar declarações. Ignoro qual fora o teor da conversa entre os dois.
Quando já tínhamos deixado a Capitania, veio o contínuo chamar-me para ir ao gabinete do oficial adjunto. Chegado ao gabinete e na presença daquele oficial de marinha, fiz o meu depoimento do incidente, dizendo que devido à situação da barra estar um pouco apertada próximo da Meia Laranja e havendo bastante corrente de enchente, que obrigava o vapor a desobedecer ao leme, além do navio ser bastante comprido e confiado no calado de água dado pelo imediato do vapor, pois já não era a primeira vez, que por lá passara, assim como outros meus colegas, baseados na enorme prática e saber, que possuíamos daquele lugar, que nos fora legado por velhos pilotos e mareantes da barra. O oficial adjunto do capitão do porto disse-me. Está certo! No entanto V. próprio, como piloto da barra, deveria ter ido verificar o calado de água do vapor e não confiar no imediato. Então eu retorqui. O imediato, em qualquer embarcação, tem um cargo de bastante responsabilidade e como tal, tenho de confiar nas suas informações e na sua competência. Além disso, acrescentei, que tanto eu como os meus colegas somos os autênticos técnicos de pilotagem do rio e da barra mas também pela nossa anterior actividade profissional nas pescas, temos a prática das manhas do rio e da barra e conhecemos o seu próprio fundo como as palmas das nossas mãos. Mais frisei, que em caso de necessidade e com embarcações de calado de água, que julgue suficiente voltaria a passar pelo Norte daquela bóia, sem qualquer receio. Então, aquele oficial adjunto disse-me, agora, certamente o capitão do porto vai apreciar o seu depoimento e, possivelmente V. irá ser penalizado com alguma repreensão ou mesmo castigo. O certo é, que se passaram vários meses e jamais fui chamado à capitania».

O "combi ship" ARION demandando o porto de Leixões em 13/12/1950 - (c) FotoMar, Leixões.

ARION, IMO 5518221, 90m/2.297tb; 09/1927 entregue pelo estaleiro Deschimag Werk AG Weser, Bremen, á DG Neptun, Bremen, que o colocou no serviço Ibérico; 1929 reconstruído; 1940 ao serviço da “Kriegsmarine”; 1940 entregue ao seu armador; 11/05/1945 bombardeado pela Força Aérea Aliada no rio Elba, sofrendo graves avarias; 1947 parcialmente recuperado; 1950 reparado e reconstruído como “combi ship” (motor e máquina a vapor);, tendo sido alongado para 96,7m/3.156tb, apresentando um novo perfil, retomando o serviço de Portugal e Espanha; 1957 motor removido; 1960 KARL RAGNAR, Lovisa Rederi (gestores A/B R. Nordstrom OY), Lovisa, Finlândia; 03/07/1961 chegava a Hamburgo para desmantelamento; Gémeo APOLLO.
Fontes: The Ships list, 100 Jahre DG Neptun - Bremen, Miramar Ship Index.
(Continua)
Rui Amaro

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

SUBSIDIOS PARA A HISTÓRIA DA CORPORAÇÃO DE PILOTOS DA BARRA DO DOURO E PORTO ARTIFICIAL DE LEIXÕES – Episódio 10



O HORROROSO NAUFRÁGIO DO VAPOR ALEMÃO DEISTER OCORRIDO NA BARRA DO DOURO A 03.02.1929

Jornal “O COMÉRCIO DO PORTO” de 05.02.1929
À esquerda vê-se o DEISTER, após se safar da restinga e ainda em dificuldades diante da pedra da Forcada, manobrando para sair a barra. À direita já encalhado e a afundar-se, acabando por se deter algum tempo semi-submerso, conquanto no castelo da popa encontram-se vinte e um náufragos, mais outros três no vau do mastro e o oficial sobrecarga abrigado na casa de navegação, que é engolfada por enormes vagalhões, tentando todos resistir a uma morte certa
.
A 04.11.1928, pelas 08h00, entrava a barra do Douro, com alguma corrente de água de cima, o vapor Alemão DEISTER na sua primeira viagem ao rio Douro. O piloto da barra José Fernandes Amaro Júnior, 29 anos de idade e dois de serviço activo, que dirigia a manobra, seguira de véspera para Leça da Palmeira, a fim de passar a noite a bordo daquele vapor, que procedente de Bremen e Anvers com carga diversa, aguardava na bacia do porto de Leixões melhores condições de mar e maré para demandar a barra do Douro.
Ao alvor, aquele piloto deu ordem para suspender os dois ferros e saindo os molhes, navegou junto à costa até dar fundo diante da barra, onde permaneceu ancorado a aguardar, que o piloto-mor Francisco Rodrigues Brandão, depois de se inteirar das condições da barra e da hora exacta para uma navegação segura, lhe autorizasse o acesso ao rio Douro. Içado o grupo de bandeiras indicativo de 16 pés de calado de água, nos mastros do cais do Marégrafo e do castelo da Foz, mandou virar o ferro e de marcha meia força avante, foi fazer o enfiamento da marca das Três Orelhas ou do Mato pela marca do Telégrafo da Cantareira. Passou a área critica da barra sem grandes percalços, uma ou outra pequena guinada originada pelos sempre imprevistos estoques de água ou pelas usuais ronhentas, que contrariava metendo leme ao bordo oposto e mais força na máquina para regressar ao meio do rio. O DEISTER parecia-lhe ser uma embarcação de bom leme e andamento, visto não lhe estar a causar grandes preocupações na sua navegação. Passadas as bóias da Cantareira/Arribadouros e depois de pegar a reboque a catraia das amarrações, seguiu para montante até alcançar o lugar do cais do Monchique, onde deu fundo a dois ferros, cabos estabelecidos para terra e ancorote dos pilotos pela popa espiado ao lançante para sudoeste.

Desenho visionado pelo autor do texto
O DEISTER, ostentando as cores do seu armador Rabien & Stadtlander G.m.b.H, Bremen.

O DEISTER, 80m/1.760tb, que vinha consignado aos agentes W.Stuve & Cia e fora construído em 1921 pelo estaleiro Howaldstwerke, Kiel, sob o nome de FRANZISKA para o armador Carl Wohlenberg, Hamburgo, tendo sido adquirido em 1928 pelo armador Rabien & Stadtlander G.m.b.H., Bremen, passando então a andar fretado à companhia Neptun Dampfs. Ges., também de Bremen, até se perder por naufrágio a 03.02.1929, quando efectuava a sua terceira viagem ao rio Douro. À mesma companhia fretadora viriam a andar fretados e mais tarde adquiridos os navios-motor gémeos DIAMANT, BRILLANT e ELEKTRA, que escalavam os portos portugueses no pós-guerra. Entre os anos de 1954 e 1957 o DIAMANT esteve sob gestão do armador do DEISTER.

Foto de Francisco Cabral
O BRILLANT (à esquerda) e o seu gémeo DIAMANT (à direita) cruzam de saída a barra do Douro no ano de 1957, precisamente junto da pedra da Forcada, local onde o DEISTER iniciou o caminho para o seu fim e dos seus desventurados náufragos.

Nesse dia trágico, um domingo, alguns minutos depois das 08h00, o DEISTER, já dentro da barra, um pouco adiante do lugar da Ponta do Dente, desgovernou, perigosamente a bombordo e o piloto da barra mandou largar o ferro de estibordo e máquina à ré, a fim de evitar a pedra da Forcada. Logo a seguir, obedecendo às manobras, foi ao meio do rio mas perdeu o referido ferro, por se ter desmanilhado a amarra. Entretanto, quando se preparava para seguir rio acima voltou a guinar a bombordo, pelo que se viu obrigado a largar o único ferro disponível ou seja o de bombordo, a fim de evitar ir sobre o enrocamento do cais Velho, acabando por perder também esse ferro. No entanto, quando tudo parecia ir correr de feição foi de guinada a sueste e sem ferros para o evitar, acabou por encalhar na restinga do Cabedelo, ficando envolvido na forte ondulação, que muita das vezes se faz sentir naquele local.
O rebocador BURNAY 2º, que pairava perto das bóia dos Arribadouros, acorreu pressuroso mas não conseguiu estabelecer ligação com o vapor sinistrado, devido à forte corrente do rio e à ondulação na restinga do Cabedelo, que o fazia perigar e causou, que alguns elementos da sua equipagem ficassem feridos. Mais feliz, apareceu às 08h30 o rebocador JUPITER vindo de Leixões que, beneficiando de alguns lisos de mar, conseguiu passar o cabo de reboque à popa do vapor sinistrado, o qual pouco depois rebentou. Uma segunda amarreta foi passada e também acabou por rebentar. Uma terceira tentativa foi mais afortunada, tendo o rebocador puxado pelo DEISTER, conseguindo fazê-lo mover-se um pouco para oeste, todavia logo a seguir o JUPITER, devido ao jeito das águas de cima e da ondulação, foi tocado pela alheta de bombordo e desgovernou, guinando para Sul. Chegou a bater por duas vezes com a quilha sobre a restinga, quebrando-se os vidros das quatro vigias à proa, pelo que o mestre Francisco António Rosa, o Salvaterra, julgando ter sofrido grande avaria no fundo provocada pelas pancadas e vendo o risco iminente de naufragar com os seus homens, sem beneficio para ninguém, mandou cortar a amarreta sem perda de tempo e de marcha toda força à ré, a fim de sair do perigo em que se encontrava, seguiu assim para fora da barra, vencendo a ondulação, que no canal de navegação ainda não era demasiado perigosa, ao contrário da restinga e do cabeço da barra.
Com a rebentação do mar, que se fazia sentir, quando o JUPITER bateu no fundo, agravado com a água que entrou em grande quantidade, a casa da máquina, caldeira, alojamentos à proa e à popa ficaram inundados. A água chegou a atingir o nível de 2,5 pés, pelo que o mestre decidiu voltar a Leixões, a fim de limitar as avarias e esgotar a água.

Cabo-piloto Alexandre Cardoso Meireles

Nessa altura, o piloto-mor Francisco Rodrigues Brandão e o cabo-piloto Alexandre Cardoso Meireles, deixando de dispor da acção dos dois rebocadores, mandaram lançar um foguetão, que conseguiu alcançar o vapor e então foi estabelecido um cabo de arame, que foi amarrado a um peoriz do cais Velho. De bordo, começaram a retesar esse arame e a breve trecho conseguia-se desencalhar o vapor, que ganhando jeito às águas de cima ficou atravessado ao rio, de proa ao Norte e dando leves indícios de se encontrar arrombado avante, talvez por ter batido na penedia submersa da Forcada ou no enrocamento do cais Velho, sem que ninguém tivesse dado por isso.
Sem os dois ferros e talvez a bordo, devido à situação e nervosismo gerado, não se tivessem apercebido da entrada de água nos porões de vante ou se ignorasse por falta de sondagem a dimensão dos rombos, o piloto da barra compelido, para se evitar o bloqueamento da barra, acabou por se fazer ao largo, com a maresia e o tempo a deteriorar-se, na tentativa vã de alcançar o porto de Leixões e onde, caso estivesse arrombado, seria encalhado em areal apropriado ou em qualquer baixio da bacia daquele porto, procedimento normal para casos semelhantes. No entanto, houveram entendidos, que não admitiam a ida do vapor para o mar, devido ao facto de se encontrar, eventualmente arrombado e sobretudo privado de ferros para uma eventual necessidade de ancorar numa situação de emergência mas o piloto-mor, certamente após ter conferenciado com os seus subordinados presentes no cais Velho e como profissional responsável pelos serviços de pilotagem apurando que havia condições para o DEISTER rumar ao porto de Leixões, teve de decidir na hora, pelo que os populares jamais lhe deveriam ter imputado culpas pela tragédia.



Após se safar da restinga do Cabedelo, e sem ferros, o DEISTER manobra para sair a barra, a fim de regressar ao porto de Leixões, evitando bloquear o canal de navegação, contudo rumando para o seu fim e para morte certa dos seus malogrados tripulantes e do desditoso piloto da barra.

Entretanto, o DEISTER saia a barra suportando algumas fortes voltas de mar, que o não faziam perigar na sua marcha mas talvez lhe tenham danificado as escotilhas dos porões de vante por onde começou também a entrar água. Todavia, um pouco a Sul da pedra do Gilreu, sem ferros e na ausência de qualquer embarcação de apoio por perto, começou por seguir à deriva a arriar-se de proa, leme e hélice fora de água, apitando lugubremente por socorro, tendo acabado por se deter encalhado no topo norte do cabeço de areia da barra, distanciado cerca de trezentos a quatrocentos metros para oés-sudoeste do farolim de Felgueiras, local de forte ondulação e difícil acesso.
Curiosamente, quando manhã cedo o DEISTER, vindo do porto de Leixões, demandara a barra, a ondulação era fraca, embora por vezes ameaçasse deteriorar-se devido à previsão de tempestade eminente mas nada fazendo prever tamanha tragédia, embora cerca das 07h40 fossem sentidas rajadas de vento de oés-noroeste da ordem dos 90 km/h e às 11h15 registara-se a rajada mais violenta de 128 km/h de noroeste. Durante a tarde repetiram-se as fortes rajadas de carácter ciclónico. O mau tempo só começou a amainar por volta das 20h00. O rebocador JUPITER, vindo do porto de Leixões para safar do Cabedelo o vapor sinistrado, entrou e saiu a barra com alguma dificuldade mas sem qualquer percalço. A maresia e a ventania começaram a piorar, drasticamente no preciso momento em que aquele vapor manobrando de proa ao mar, pelos seus próprios meios, retrocedia para o porto de Leixões, abandonando o rio Douro, se bem que quando o inditoso piloto da barra constatou que não alcançaria bom porto, tudo levou a crer, enquanto teve hélice e leme, que tentou manobrar de maneira a encalhar o DEISTER a Norte do molhe de Felgueiras, mais propriamente na penedia da praia do Ourigo, local onde haveria mais hipóteses de resgate da tripulação. Só que já era demasiado tarde.


Colecção de Francisco Cabral / Foto de autor desconhecido
O rebocador JUPITER da Empresa de Transportes Fluviais e Marítimos (Garland, Laidley & Co. Ltd - Porto), que capitaneado pelo mestre Francisco António Rosa, o Salvaterra, ingloriamente realizou várias tentativas arriscadas para salvar os náufragos do DEISTER.

Esse acidente redundou numa enorme desgraça, na qual pereceram todos os seus 24 tripulantes e o piloto da barra Jacinto José Pinto, 33 anos de idade, profissional muito competente. Desventurados, que se debateram, estoicamente cerca de seis horas contra os gigantescos andaços de mar. Vinte e um agarrados ao varandim do castelo da popa, um outro apoiando-se na casa de navegação, então já, parcialmente despedaçada e três refugiados no vau do mastro de ré, até desapareceram naquele mar revolto, apesar de se ter feito todas as tentativas possíveis e inimagináveis para o seu salvamento, por terra e mar sob chuva e ventos violentos contrários aos foguetões sem conta, que eram lançados, continuamente, a partir do molhe de Felgueiras ou do areal do Cabedelo, contudo sem atingirem o alvo, por várias corporações de bombeiros sem olharem ao cansaço e ao perigo, as quais eram os Municipais do Porto, Voluntários do Porto, Portuenses, Invicta (corporação há muitos anos extinta, cuja sede se situava na rua Cândido dos Reis) e Matosinhos e Leça, coadjuvados por alguns pilotos da barra e seu pessoal, entre os quais o cabo-piloto Alexandre Cardoso Meireles, perito no lançamento de foguetões e responsável pela estação de Socorros a Náufragos da Foz do Douro. Cerca das 15h15 o DEISTER estava completamente desfeito, deixando então de se vislumbrar qualquer das suas mais pequenas estruturas.
Como acima se relata, entre os náufragos havia o piloto da barra, cuja esposa com os quatro filhitos ao colo ou muito agarrados às suas saias, diante da praia das Pastoras, certamente sem compreenderem o que se passava, não tirava os olhos do DEISTER. Gritava, chorava, implorava: ´´É ele, é ele! Jacinto! Jacinto! O mar, raivosamente não largava as suas presas…
Um tripulante, que agarrado ao varandim da casa de navegação, enfrentando catadupas de vagalhões impiedosos, viu os seus companheiros de infortúnio serem levados pela borda fora, tendo tido ele, algum tempo depois, o mesmo fatídico destino, sendo arrebatado pela maresia, que espatifou por completo a ponte de comando como se de uma caixita de sabão se tratasse, sem que antes não deixasse de erguer as mãos ao céu e de se virar para a bandeira Alemã fazendo a continência. Esse tripulante, que usava uma prótese de borracha por ter perdido uma perna durante a primeira guerra mundial, como oficial da Marinha Imperial Alemã, era o oficial sobrecarga Walter Elster, que representava a companhia fretadora e anteriormente ocupara o lugar de imediato do vapor AJAX, usual frequentador do porto comercial do Douro. Esse oficial falava português fluente e era figura muito conhecida na cidade do Porto, onde possuía muitos amigos. De terra, através de binóculos, vislumbrava-se no DEISTER, saltitando e uivando, aflitivamente um cão enorme e também um canário. Por incrível que pareça a bandeira Alemã içada no respectivo mastro, já muito perto do fim da tragédia, apareceu a meia haste.
Logo que o JUPITER entrou em Leixões procedeu-se ao seu esgotamento e entretanto o mestre ficou muito surpreso por saber, que o DEISTER, já fora da barra estava a naufragar, pois julgava-o livre de perigo e então dirigiu-se sem demoras para o local do naufrágio e por ordem do capitão do porto levou a reboque o salva-vidas LEIXOES. De Leixões saíram também o rebocador LUSITANIA e a traineira S. SEBASTIÃO, a qual levava um outro salva-vidas a reboque.


O salva-vidas LEIXÕES e a sua companha, vendo-se à direita o patrão José Rabumba, o Aveiro.(colecção R. Delgado).

Chegados às imediações do horroroso sinistro, com o mau tempo e o mar a crescer assustadoramente aliado a fortes bátegas de água, via-se, sobre os andaços de mar, que a maior parte dos náufragos, incluindo o piloto da barra, se encontrava no tombadilho do castelo da popa. Então, o JUPITER foi-se aproximando quanto pode, largando o cabo de reboque do salva-vidas, cujo patrão era José Rabumba, o Aveiro. Nesse momento caiu um forte pampeiro, vindo de noroeste. Foi então, que uma vaga descomunal – a vaga da morte – varreu o vapor de lés a lés, levando aqueles desgraçados homens, que agora se debatiam com a maresia enfurecida, tentando alcançar a tábua de salvação, que mais perto distinguiam, que eram as embarcações que por fora da rebentação os tentavam socorrer. Os infelizes aos poucos foram desaparecendo, viam-se apenas dois deles agarrados a uns troços de madeira. Dado que o salva-vidas não tinha hipótese de se aproximar, o mestre do JUPITER mandou de imediato preparar as bóias de salvação e sujeitando-se ao perigo aproximou-se de ré o mais que pode dos dois náufragos. Depois – já a pouca distancia – acontece o imprevisto, uma fortíssima vaga fez voltar o salva-vidas LEIXÕES, que estava a uns cem metros pela proa, pelo que teve de socorrer os cerca de 15 homens da sua companha. Por sua vez o JUPITER, que das poucas embarcações de resgate, que se encontravam na área, embora não fosse a ideal, era a que melhor se adequava à aproximação, ficou envolto na maresia e mais uma vez a casa da máquina e da caldeira foram alagadas.

José Rabumba - O Aveiro

O JUPITER chegado junto do salva-vidas LEIXÕES, que entretanto retomara a sua posição normal, foi-lhe passado o cabo de reboque e o seu mestre, um dos mais experimentados, depois de apreciada a situação, juntamente com o patrão do salva-vidas, o cabo de mar da capitania José Rabumba, o Aveiro, olhando ao recrudescer da maresia e do temporal decidiram-se por se fazer ao largo e rumaram a Leixões e se aquele verdadeiro lobo-do-mar, com uma folha de serviços rutilada de brilhante, aceitou retirar das imediações da tragédia, teve-se de acreditar, é porque era, materialmente, nada, absolutamente nada se poderia fazer pelos que se debatiam com as ondas. O rebocador LUSITANIA e a traineira S. SEBASTIÃO com o outro salva-vidas a reboque também tentaram aproximar-se do local do naufrágio mas a desistência do JUPITER” e a não presença do destemido patrão José Rabumba, o Aveiro, obrigou-os a desistir.
Note-se, que o JUPITER, 27m/114tb/450hp e o LUSITANIA, 25m/86tb/160hp, apenas eram óptimos rebocadores costeiros e portuários, não eram rebocadores de alto-mar, pois se o fossem aguentariam melhor a forte ondulação, além de não virem a ser tão facilmente alagados e como tal, possivelmente conseguiriam aproximar-se mais dos náufragos, dando-lhes alguma hipótese de salvamento. Muito provavelmente nem todos teriam essa sorte mas alguns, certamente viriam a ser resgatados, como aqueles dois desventurados que se agarravam aos troços de madeira e por pouco não foram salvos. A presença de uma embarcação de maior porte e boa máquina, sob a orientação de um prático da barra, seria determinante.


Desenho visionado pelo autor do texto
O vapor Alemão STAHLECK

O piloto José Fernandes Amaro Júnior contava ao autor, que caso estivesse embarcado no vapor Alemão STAHLECK, 77m/1.634tb, que na altura era pilotado pelo seu colega Hermínio Gonçalves dos Reis, o qual ficara impedido de demandar a barra do Douro e tendo a máxima confiança naquele excelente vapor da companhia DDG Hansa, Bremen, não deixaria de incitar o seu capitão e a respectiva equipagem para uma tentativa de aproximação ao vapor naufragado. Aliás, o STAHLECK recebeu de início, através da telegrafia de bordo, um pedido de S.O.S. emitido pelo DEISTER, o que o fez deslocar para a costa mas pouco depois rumou a Noroeste indo fundear para lá das três milhas. Também o paquete holandês FLANDRIA, gémeo do ORANIA, que se perdeu na bacia do porto de Leixões em 1934, 137m/10.171tb, da companhia K.H.L. (Mala Real Holandesa), Amesterdão, que se destinava a Leixões, captou o mesmo S.O.S. pelo que rumou à costa, porém vendo a impossibilidade de colaborar nas acções de salvamento, olhando ao seu excessivo porte, seguiu viagem, deixando de escalar Leixões devido ao temporal, que se avizinhava. Então, o STAHLECK largaria os dois ferros, com o máximo de amarra e deixar-se-ia descair de ré, após o que seriam lançadas ao mar várias bóias de salvação amarradas a retenidas e também nas mesmas condições arriar-se-ia uma baleeira salva-vidas não tripulada. Meios esses, que com a ajuda da ondulação, possivelmente derivariam para junto do DEISTER. Em face disso, talvez alguns daqueles desgraçados náufragos se atirassem ao mar e a nado, apesar da forte ondulação mas com a corrente ida do rio, pudessem alcançar aqueles meios de salvamento e acabariam por ser resgatados. Procedimentos idênticos já têm sido solução para salvamento de muitas vidas, por esse mundo fora.
A 15 de Abril, ou seja passado cerca de dois meses e meio, após o naufrágio de 03 de Fevereiro, o STAHLECK, cuja manobra de entrada em 17 pés de água era orientada pelo piloto Júlio Pinto de Carvalho, também encalhou na restinga do Cabedelo, ficando retido algumas horas, todavia com a força das águas de cima, sem que se previsse safou e foi mar fora sempre a bater com a quilha sobre o banco da barra e a ser envolvido por gigantescos andaços de mar, que o faziam adornar perigosamente, A multidão em terra, que assistia às manobras de desencalhe, chegou a temer pelo pior, visto o STAHLECK ter passado rente aos destroços do DEISTER. Felizmente tudo acabou por correr bem, indo de seguida aquele vapor abrigar-se a Leixões, sem mais percalços, a fim de aguardar nova maré para demandar o Douro.




Uma ronda penosa. Logo que a grande tragédia se consumou, os pilotos da barra Pedro Reis da Luz, Elísio da Silva Pereira, José Fernandes Amaro Júnior, Joaquim Matias Alves e Carlos de Sousa Lopes, pretenderam correr a costa, só que o comandante do posto da guarda-fiscal de Lavadores aconselhou-os a não o fazerem, visto a noite aproximar-se e toda a costa estar a ser patrulhada por praças da sua corporação, devidamente armadas e como tal interdita a quem quer que fosse. Às 07h00 do dia seguinte meteram-se a pé pela costa abaixo, desde o Cabedelo, caminhando por vezes sob alguma chuva e açoitados pela ventania, embora o tempo e sobretudo o mar estivesse muito mais calmo do que de véspera, à procura de corpos, que a maresia pudesse atirar à costa.



Três dos cinco pilotos, que calcorrearam léguas e léguas de areal, até muito perto de Cortegaça. Da esquerda para a direita Pedro Reis da Luz, que por ironia do destino, também perdeu a vida no naufrágio do iate-motor METEORO em 17.01.1947, Elísio da Silva Pereira e José Fernandes Amaro Júnior.

O que aqueles homens, que eram os únicos que poderiam identificar os tripulantes e o seu colega, dado que já tinham pilotado o DEISTER, passaram nessa jornada de humanitarismo, foi bem digno das grandes almas. Depois de terem calcorreado léguas e léguas até muito perto de Cortegaça, mais delas sobre areia gelada e molhada e para o fim já sob o escuro da noite, com as roupas encharcadas, tiveram de descalçar as botas para que os pés gelados pela água pudessem reagir. E, assim foram, em meias, ao principio, quase descalços quando elas se gastaram, até que deram com os cadáveres do 2º maquinista e do cozinheiro, que já tinham dado à costa, reconhecidos por aqueles elementos da corporação de Pilotos, nas praias da Aguda e Paramos, cujos pescadores locais se tinham atirado à água para os resgatar. Os pilotos José Fernandes Amaro Júnior e Carlos de Sousa Lopes chegados a Paramos tomaram o comboio e regressaram â Cantareira por instruções recebidas do piloto-mor Francisco Rodrigues Brandão, a fim de seguirem para Leixões para embarcarem em vapores fundeados na bacia, devido a todos os restantes colegas se encontrarem ocupados noutros serviços e o piloto Hermínio Gonçalves dos Reis, que entretanto desembarcara do vapor STAHLECK, metera parte de doente. Em Paramos foram acolhidos em casa da mãe do seu colega José Fernandes Tato, que lhes prodigalizou toda a assistência de que necessitavam.
Longas e penosas foram as suas pesquisas, mas dedicação e sacrifício resultaram inúteis, pois que nem o seu desventurado companheiro de lides na barra nem mesmo outro qualquer, o mar os deixara encontrar. Apenas observando, pela costa adiante muitos destroços e, estranhamente encontraram em Valadares duas das quatro baleeiras salva-vidas, uma das quais, completamente intacta e ainda na Aguda a casa de navegação e o varandim. E assim regressaram, como vindos de passar as mais duras privações, sempre pela costa fora, com os olhos postos nesse mar raivoso, que lhes tragara o amigo dedicado e companheiro muito querido!
O corpo do piloto Jacinto José Pinto, o Zimbra, como era mais conhecido, deu à costa alguns dias depois, tendo o seu funeral tomado lugar a 15 de Fevereiro, desde a capela da N. Sra. da Lapa, cujas portas foram abertas na ocasião da desgraça, para que os crentes intercedessem à Virgem pela salvação dos naufragados, onde estivera depositado em câmara ardente, seguindo depois para a igreja paroquial, transportado num pronto-socorro dos B. V. do Porto, onde tivera lugar a celebração dos responsos, a qual se situava muito perto da residência do inditoso piloto, sita à travessa do Adro nº 6.
À passagem do cortejo fúnebre, o povo nas ruas chorava copiosamente numa manifestação colectiva de pesar, que era um traço psicológico bem digno de nota. A esposa do inditoso piloto com os filhinhos ao colo ou agarrados a si, apareceram a certa altura da penosa marcha, na companhia confortante de vizinhas, no alto de um muro sobranceiro à igreja, para dizer o último Adeus àquele, que fora o seu braço carinhoso e protector. E, então aconteceu uma cena, cujo relato seria tão supérfluo como doloroso. Enquanto a pobre viúva, numa agonia a que podia bem supor-se, agitava, num arranco derradeiro o lenço, que pendia na sua mão nervosa, o cortejo andando lesto, como se para fugir àquele lance seguiu rua das Laranjeiras abaixo, prosseguindo a caminho do cemitério paroquial da Foz do Douro, sob enormíssimo acompanhamento de pessoas de todos os extractos sociais, sobretudo da actividade marítima, incluindo tripulantes de vários navios surtos no Douro e Leixões, onde foi sepultado em jazigo próprio.
No jornal “O Comércio do Porto” de 05.02.1929 noticiando a tragédia, lia-se o seguinte trecho: «Porém, se considerarmos que o desastre se deu à vista de terra, a dois passos do Passeio Alegre, pôde dizer-se, que a tragédia redobrava, quintuplicando a angústia daqueles desgraçados!
Calcule-se o debate intimo, a saudade compungente e o desespero atroz que não teria acometido esses pobres homens, ao olharem, lá do mar, por entre os vagalhões medonhos que os iam engolir, a terra linda da salvação, e os milhares de pessoas que, à beira mar, assistiam desesperadas, à cena lancinante, sem nada poderem fazer, sem nada poderem tentar!
Ah! Mas dor imensa, como poucas vezes se há-de ter sentido, deve ter sido a do pobre piloto da barra, que era ali da Foz, e que, portanto, durante as longas horas em que aguardava a morte, pôde descobrir os contornos da casinha onde, às noites, repousava no seio abençoado dos seus quatro filhinhos tão queridos e da esposa dedicada!
Pobre homem! Morrer, a pouco e pouco, de pé, entre as ondas bravas, olhando a terra querida ali tão perto, fitando milhares de concidadãos e adivinhando os tectos do seu lar, sem poder, ao menos, fazer ouvir um derradeiro Adeus! Que tragédia lancinante!».
Naquele domingo gordo, que deveria ter sido um dia de muita alegria e de folguedos, tornou-se, verdadeiramente angustiante, tendo sido cancelados vários festejos carnavalescos e na Foz do Douro, os moradores da borda d’água, que de suas casas presenciavam aquele horrendo espectáculo, durante a hora do almoço não conseguiam tragar o que quer que fosse, tão incomodados estavam com aquela triste situação.
A 31 de Janeiro, uma quinta-feira, pelas 15h00, o DEISTER procedente de Antuérpia e Bremen, transportando carga diversa, demandou o porto de Leixões para aliviar parte da carga, a fim de reduzir o seu calado de água de maneira a permitir a sua entrada na barra do Douro. A 01 de Fevereiro, sexta-feira, estava um dia de forte neblina à mistura com alguma chuva, que prevaleceu desde as 05h00 até às 08h00. Às 07h00, apesar da pouca visibilidade entrou a barra sem qualquer percalço o vapor Português ANGRA, 86m/1.525tb e quando este vapor conduzido pelo piloto Júlio Pinto de Carvalho (Júlio Guerra), passava entre as bóias da Cantareira/Arribadouros, veio informação de Leixões, que estava à vista um outro vapor, o qual vindo do Norte navegava de rumo à barra do Douro. Em face disso o piloto-mor Francisco Rodrigues Brandão, a fim de não se perder tempo, ordenou ao piloto Afonso da Costa Pinto, da secção de Leça da Palmeira, que saltasse a bordo e o conduzisse para a barra. Chegado diante da barra assinalou o seu calado de água de 15 pés com cinco toques da sirene de bordo. Em face da neblina persistente e alguma água de cima, aquele piloto-mor reunindo em consulta com os seus subalternos e não se conseguindo identificar o vapor para se saber das suas condições de leme e marcha, aliado à agua do monte e à neblina que persistia, foi recusada a entrada, ficando fundeado fora da barra, piloto embarcado, a aguardar uma próxima oportunidade.
A 02 de Fevereiro, sábado, ao fim da tarde entraram a barra o vapor carvoeiro Inglês IGHTAM, cerca de 75m/1.249tb, que era o vapor que chegara de véspera e ao qual fora negada a entrada e ainda o vapor de pesca Português FAFE, 41m/298tb, que rumaram aos seus ancoradouros sem qualquer contrariedade. O DEISTER, vapor de maior porte e calado de água, vindo de Leixões, dirigido pelo piloto Elísio da Silva Pereira, que fora para bordo de véspera, a fim de se fazer à barra ainda de manhã cedo, dado o nevoeiro persistir não entrou regressando a Leixões a fim de aguardar entrada no dia seguinte.
Nessa manhã trágica de Domingo, dia 3, ainda de madrugada, os pilotos Jacinto José Pinto e o José Fernandes Amaro Júnior apanharam o carro eléctrico da linha 1 para Leça da Palmeira, a fim de irem embarcar dentro do porto de Leixões nos dois vapores, que se destinavam ao rio Douro e que por razões de calado estiveram a aliviar carga. Já de véspera tinham vindo à barra, contudo as condições de neblina e tempo instável não lhes permitira a entrada.

Jacinto Jose Pinto, o desditoso piloto da barra (imagem da esquerda) e o seu colega José Fernandes Amaro Júnior (imagem da direita).

O primeiro, daqueles dois pilotos, embarcou no DEISTER e o segundo no Italiano DORIDE, este bastante difícil de leme e máquina, possivelmente iria entrar a reboque do rebocador BURNAY 2º. O DORIDE, 75m /1.507tb, pelo seu calado de água menor, deveria ter deixado a bacia do porto de Leixões e demandado a barra do Douro antes do DEISTER, simplesmente assim não sucedeu, devido às suas amarras terem várias voltas e encontrarem-se enrascadas com as do vapor Português SANTA IRIA, que iria cambar para o Norte, conduzido pelo piloto Manuel Pinto da Costa, o qual estava acompanhado do seu colega de Viana do Castelo, que veio embarcar a Leixões para lhe dar entrada naquele porto minhoto, tendo demorado bastante tempo a suspender os ferros, pelo que o vapor Alemão cruzou os molhes à sua frente e fez-se à barra do Douro.


Desenho visionado pelo autor do texto
O DORIDE da linha do armador Servizio Italo-Portoghese S.A. di Navigazione, Génova.

Quando as duas amarras estavam soltas e os dois ferros a surgirem ao lume de água, o piloto José Fernandes Amaro Júnior, na ponte de comando, olhando para sul vislumbrou o DEISTER a sair a barra batido por enormes e perigosas voltas de mar, já metido de proa e a afundar-se. Então disse ao capitão, vamos amarrar novamente, porque já não temos entrada no rio Douro e pegando no manípulo da sirene, apitou várias vezes a chamar a embarcação dos pilotos e a alarmar por socorro, chamando também a atenção dos rebocadores LUSITÂNIA e JUPITER, este acabado de chegar da barra do Douro, após ter estado a tentar safar o DEISTER da restinga do Cabedelo.
Regressado à Cantareira, o piloto José Fernandes Amaro Júnior ao apear-se do carro-eléctrico na paragem dos Pilotos e olhando para o vapor, que já se encontrava semi-submerso, deparou com a chaminé do vapor a cair, permanecendo os dois mastros e a casa de navegação à superfície e depois de passar pela corporação apressou-se a seguir para sua casa, a fim de sossegar os seus pais, irmãos e irmãs, que banhados em lágrimas e lamentando a sorte do piloto e de toda a equipagem do DEISTER, o abraçaram efusivamente. A princípio constava, que ele era o piloto do DEISTER e de facto poderia ter sido, caso o seu camarada Jacinto José Pinto, que estivera de parte de doente, não se tivesse apresentado ao serviço de véspera à noite.
Á Foz, no domingo, apesar da chuva ininterrupta e do vento violentíssimo, dirigiram-se milhares de curiosos, juntaram-se dezenas de automóveis, seguindo os eléctricos apinhados. Chegando mesmo a acorrer à Foz gente de terras distantes.
A 22.06.1929 o vapor salvadego da Marinha de Guerra NRP PATRÃO LOPES deslocou-se à barra do Porto, a fim de proceder â avaliação dos destroços do DEISTER, vindo para tal munido de aparelhagem própria e mergulhadores da armada. Os mergulhadores que desceram ao fundo do mar constataram a presença de carga nos porões e puderam observar, que o casco estava alquebrado a meia-nau. Após estes trabalhos, o NRP PATRÃO LOPES foi trabalhar no local onde jazia o casco do vapor grego VIRGINIA, que encontrado abandonado ao largo da costa foi trazido por várias traineiras em 24.11.1928, acabando por submergir junto do Castelo do Queijo, mais propriamente num dos enfiamentos de acesso ao porto de Leixões.


Salvadego PATRÃO LOPES / (c) desenho de Luis Filipe Silva /.

Nos primeiros anos da pós-guerra, a filha do Cdt. August Becken, capitão do DEISTER, a qual acompanhava o seu marido, capitão do navio-motor Alemão ELISABETH, que após ter saído do porto de Leixões rumou ao local onde se dera o naufrágio e o seu pai tinha perecido, tendo então lançado ao mar uma coroa de flores como homenagem ao seu progenitor e a todos os seus camaradas de infortúnio, cujos corpos daqueles que foram arrojados à costa estão sepultados no cemitério da Agramonte.
Curiosamente os quatro vapores referidos neste texto, também tiveram acidentes na barra do Douro ou nas suas imediações, se bem que de muitíssima menor gravidade. A 23.03.1930, o FAFE, piloto Carlos de Sousa Lopes, quando deixava a barra, devido a uma avaria na máquina do leme, foi colidir com o dique da Meia-Laranja danificando a proa e fazendo avarias no cais, ainda hoje visíveis. A 27.03.1932, o ANGRA quando na madrugada de 27.03.1932, sem que pudesse fundear devido à forte agitação marítima, evolucionava diante da barra do Douro e devido à falta de visibilidade motivada pelos fortes aguaceiros, foi encalhar diante da pedra do Cão, a sul do Cabedelo, povoação de Lavadores. Embora o vapor fosse considerado perda total, a sua tripulação foi resgatada, através do cabo de vaivém, durante a manhã. A 26.02.1934, o DORIDE, piloto João António da Fonseca, quando demandava a barra sob água de cima, partiu-se um dos gualdropes do leme e foi sobre o enrocamento do cais Velho. O rebocador VOUGA 1º acorreu em seu auxílio e foi safo. A 23.03.1934, o IGHTAM, piloto Francisco Soares de Melo, demandava a barra com água de cheia, guinou a Sueste e foi encalhar de popa na restinga do Cabedelo. Mais tarde safou pelos seus próprios meios e atravessado foi barra fora, quase encalhando nas pedras da ponta do Dente, caso não tivesse largado um dos ferros. Logo que lhe foi possível fez-se de novo à barra a reboque do VOUGA 1º, mesmo assim desgovernou a bombordo foi encostar de proa ao enrocamento do cais Velho, logo que safo seguiu para montante.
Como sempre acontece nas situações de acidentes marítimos e a fim de se tentar minorar as dificuldades monetárias dos familiares mais chegados dos náufragos desaparecidos, também muitas instituições oficiais, colectividades, etc. entregaram donativos e realizaram subscrições a favor da viúva e órfãos do infeliz prático da barra Jacinto José Pinto e a Associação dos Armadores Marítimos e Agentes de Navegação do Porto e Leixões, também abriu uma subscrição e apelaram à Corporação dos Pilotos da Barra para tratar de organizar uma caixa de socorros para protecção de casos idênticos, que eventualmente pudessem vir a acontecer, uma vez que as taxas de pilotagem pagas davam margem para tal fim humanitário.
De facto os pilotos da barra não estavam protegidos na doença, morte, acidente, etc., porque algumas décadas antes, cada piloto possuía a sua própria embarcação, a chamada catraia das amarrações, não recebendo qualquer ordenado e como tal cobravam os proventos por cada serviço prestado, directamente do consignatário ou mesmo do capitão ou mestre do navio, os quais também lhes concediam, voluntariamente uma gorjeta, que perdurou pelos tempos fora. Desses proventos, deduziam uma percentagem para o pessoal auxiliar contratado ou eventual e para a administração da sua corporação, etc. O próprio escriturário da corporação era um piloto da barra. O piloto José Fernandes Amaro Júnior, pai do autor, contava, que por volta dos seus 11 anos de idade (1910), além de ir de moço nas catraias das amarrações, muitas vezes conduziu a remar à ginga a caíca dos pilotos até junto da Meia Laranja para recolher os pilotos dos iates, palhabotes e lugres à vela mercantis ou bacalhoeiros, que a reboque iam de saída e cada piloto compensava-o com um vintém por essa tarefa.
Raul Brandão na sua obra “OS PESCADORES” relata o seguinte: «O senhor piloto-mor passeia no cais com as mãos atrás das costas ralhando aos velhos da Pensão», diz aquele grande escritor, ao capítulo Foz do Douro – A Cantareira. É que, ainda em 1920, o pessoal menor dos pilotos não era efectivo, razão por que se recrutava entre os marítimos quando havia navios para entrar ou sair. Assim como adventícios, apenas trabalhavam quando solicitados, pois o sistema tinha a designação de “chamadoiro”; mas os da “Pensão”, eram já permanentes, ou sejam sempre os mesmos e portanto com vencimento garantido. Por tal facto, como tinham sempre pensão, o piloto-mor escolhia os mais idosos e até porque eram os mais conhecedores. Daí a razão do nome que designava a catraia (in “RIO DOURO E O SEU PORTO” – piloto-mor José Fernandes Tato – 1946/65).
Embora os pilotos da barra e seus mais próximos familiares não tivessem qualquer protecção seguradora ou social, contudo o pessoal auxiliar contratado ou eventual, que trabalhava sob a sua dependência, esses beneficiavam de seguro, que cobria os riscos por acidente e, consequentemente doença, morte, etc. O respectivo prémio de seguro era pago pelos próprios pilotos.
Assim o trágico acidente do DEISTER deu azo a que os pilotos da barra instituíssem a “Caixa de Pensões a Viúvas e Órfãos dos Pilotos da Barra do Douro e Leixões”, fundada em 18.08.1930, caixa essa, que nada tinha a ver com a chamada “catraia da pensão” ou seja a embarcação de pilotar a remos e vela. Lamentavelmente alguns pilotos não aderiram, criando situações embaraçosas às suas viúvas e órfãos, após os seus falecimentos. A viúva e os órfãos do desventurado piloto Jacinto José Pinto, embora desde inicio estivessem a auferir de uma pequena verba, passaram de imediato a beneficiar da referida caixa, cuja pensão, ainda há poucos anos lhe era remetida para a sua terra natal, no interior do país. Uma tentativa feita para a formação de uma caixa de pensões do pessoal assalariado, falhou por divergências entre os seus elementos, todavia uma idêntica tentativa lançada pelo pessoal assalariado da Corporação de pilotos de Lisboa vingou por consenso geral.
Mais tarde, para fazer face à pensão paga às viúvas e órfãos do pessoal incorporado segundo as receitas oficiais e outra, que lhes completava, com aquela, mediante receitas particulares, ainda que oficializadas, passou a reverter os ganhos dos serviços efectuados pela lancha P3 e da bóia de apoio às amarrações do molhe Sul do porto de Leixões, até nova alteração administrativa da Corporação de Pilotos, após a revolução de Abril de 1974.
Na verdade, devido a uma queda sobre a lancha de boca aberta P3, que o piloto José Fernandes Amaro Júnior dera ao desembarcar do paquete inglês HILARY em 10.04.1934, entre molhes, em dia de agitação marítima, o qual ficara bastante maltratado com cerca de dois meses de incapacidade para o trabalho e por pouco não perdera a vida, a corporação recusara-se a pagar-lhe as despesas das consultas médicas, enfermagem e medicamentos, etc. Em face da recusa recorreu ao Chefe do Departamento Marítimo do Norte, o qual contactou o piloto-mor para que aquele piloto fosse ressarcido do valor das referidas despesas e chamou a atenção para que de futuro fosse feito um seguro, que cobrisse todos os riscos a que os pilotos e seus assalariados estivessem sujeitos, o que foi cumprido.
Tal como a tragédia do PORTO, ocorrida na barra do Douro a 28.03.1852, também a do DEISTER, passou a fazer parte dos grandes naufrágios para a história trágico-marítimo mundial mas muito particularmente da barra do Douro e de Portugal, que fez chamar a atenção das autoridades governamentais para a construção de uma barra com um mínimo de condições e segurança, que parece, então ter caído em ouvidos moucos, salvo obras de manutenção e quebramento de rochas, a qual só passado tantos e tantos anos, apesar de novos sinistros ocorridos, dentre os quais se destaca os do GAUSS, INGA l, LAURINDA, METEORO e de um ínfimo número de pequenas embarcações de pesca com a perda de valiosas vidas humanas, particularmente do centro piscatório da Afurada, só agora acabou por ser realizada, com a construção de uma nova barra, cuja inauguração ocorreu a 20.03.2009, depois de várias polémicas e apresentação de alternativas que além de ineficazes eram ridículas, que embora tudo leve a crer, que não seja a barra ideal tão ambicionada, porém tornou-se um bastante melhor do que a anterior. Valha-nos ao menos isso!
Fontes: piloto José Fernandes Amaro Júnior, Imprensa diária, Miramar Ship Index, Rio Douro e o Seu Porto (piloto-mór José Fernandes Tato), A Barra da Morte – A Foz do Rio Douro (autor Rui Picarote Amaro, editor O Progresso da Foz).
(Continua)
Rui Amaro