RECORDANDO O NAUFRÁGIO DO
LUGRE-MOTOR “MARIA ONDINA” NO CABEDELO DA BARRA DO DOURO
O MARIA ONDINA encalhado na restinga do Cabedelo
A
16/04/1946, a meio da tarde, a notícia correu pela cidade do Porto com a
rapidez com que sempre se propagam as más novas. A passagem do material de
socorros a náufragos dos bombeiros – Sapadores e Voluntários – que se dirigiam
para os lados do mar, maior volume deu ao alarmante boato de que na Foz do
Douro, à entrada da barra, se registara novo e grave acidente.
E, uma vez
mais, a já velha e revelha questão do mau estado da barra do Douro – tantas e
tantas vezes debatidas nas colunas de “O Comercio do Porto”, se avivou na memória
de toda a gente e se produziram os mais acres comentários pelo incompreensível
abandono a que a sua solução tem sido votada.
Desta vez,
felizmente, não houveram vitimas a lamentar, mas mesmo, assim, as centenas de
pessoas que presenciaram o acidente viveram momentos de angústia, dentre as
quais o autor do blogue, ainda com nove anos de idade, vendo a dois passos da
morte uma dúzia de homens que só a muito custo se salvaram.
O desastre
que a seguir se relata nos seus lances principais, não se devia, nem poderia
ser atribuído a outra coisa, que não seja à difícil passagem que a barra do
Douro oferecia. As últimas cheias do rio e a velocidade da corrente arrastaram
grande quantidade de areia deixando o estreito canal um pouco mais livre, mas isto
não basta. Segundo testemunho dos práticos, a barra não oferecendo espaço
suficiente para a mais pequena manobra, só não é perigosa desde que um “estoque
de água” não desvie do seu caminho – do caminho indicado pelos pilotos, que
como práticos o conhecem bem – o navio que sai ou entra no rio Douro. Então a
passagem é fácil, para qualquer navio.
Um pouco
depois do acidente, o vapor Holandês ODYSSEUS, de maior porte foi de saída, sem
sofrer qualquer incidente e o enxame de bateiras com os seus tresmalhos da
pesca do sável na água, rodeavam o lugre em perigo, como se nada de anormal
estivesse a ocorrer.
O sinistro
verificou-se pelas 15h00, sem que nada o fizesse prever. O mar, embora ligeiramente
picado, não oferecia perigo. E o vento Nordeste, não soprava tão rijo, que
impusesse a adopção de providências especiais.
O MARIA
ONDINA, um lugre de motor auxiliar, de boa construção, bem posto à prova em
longas viagens de alto mar, mesmo nos mares gelados do Noroeste do Atlântico,
chegara pelas duas horas da madrugada e fundeara ao largo, a fim de aguardar
maré e piloto. Procedia de Setúbal e trazia um carregamento de cerca de
seiscentas toneladas de adubos, e vinha consignado aos agentes M. Almeida &
Santos, Sucrs, da praça do Porto.
A entrada
a bordo do piloto feita à hora em que a maré oferecia melhores probabilidades
para demandar a barra, verificou-se pouco antes das 15h00. O MARIA ONDINA com o
motor auxiliar no máximo da sua força aproxima-se da bóia da barra, sob as
indicações do experimentado piloto Jaime da Silva Martins, e iniciou a travessia
do canal. A sua marcha era razoável, e a operaçãp em tudo decorria com absoluta
normalidade.
Num
momento, porém, tudo se transformou, tomando aspectos de tragédia iminente, com
todo o seu cortejo de dúvidas angustiosas, de terriveis ansiedades.
Já dentro
da barra, no local denominado Ponta do Dente, o lugre começou a diminuir progressivamente
de andamento, e a agitar-se de estranhas sacudidelas, ora guinando para
bombordo e logo de seguida para estibordo, e começando a descair para cima da
temerosa restinga do Cabedelo, cemitério de navios, fora apanhado pelas
assustadoras “águas de ronhenta” ou fortes “estoques de água” muito caracteriscos
na barra do Douro, após cheias.
O piloto
num esforço supremo para evitar o desastre iminente multiplicou as suas rápidas
e ágeis manobras, que a sua experiencia e saber lhe aconselharam, mandou içar a
vela do traquete, a fim de auxiliar a marcha, e tudo tentou para impedir de o navio
se aproximar da restinga, ali mesmo a estibordo, onde acabou por se deter
encalhado, rodeado de bastante agitação marítima, muito usual naquele ponto da
barra.
Nada mais
havia a fazer, senão tratar de procurar salvar a tripulação. A sorte do MARIA
ONDINA estava decidida. De terra, já muitos corações o haviam pressentido, e,
por isso, quando o pessoal da lancha de pilotar P4, sob o comando de mestre
Eusébio, se fez à abordagem, em área de pouco fundo e cheia de bancos de areia,
indiferente a todos os riscos
O
salvamento de nove tripulantes e do piloto Jaime da Silva Martins teve lances
emocionantes, A lancha-motor P4, que acompanhara as manobras para a entrada do
lugre, tinha como mestre Eusébio Fernandes Amaro, motorista Joaquim Jeremias e
como marinheiro Alexandre Duarte, Estes três homens, logo que se aperceberam da
iminência do perigo que os tripulantes do MARIA ONDINA corriam, esqueceram a
sua própria segurança para salvá-los. Mantendo tão próximo quanto lhes era possível,
a lancha do costado navio desgovernado, foram-no acompanhando até recolherem a
bordo nove dos homens da tripulação e o piloto Jaime da Silva Martins, por
diferentes vezes uma ou outra vaga mais alterosa elevou na sua crista de espuma
a frágil lancha, ameaçando ora voltá-la, ora projectá-la contra o costado do
navio naufragado, mas sempre acabando por afastá-la, e outras tantas vezes se
viu a pequena gasolina tentar nova abordagem, recolhendo sempre mais um homem,
salvando mais uma vida.
De terra,
a multidão, emocionada, gritava e pedia o salvamento dos restantes homens que
se viam no convés do navio perdido. Mas a partir de determinada altura, a
lancha não podia continuar a arriscada aventura. O MARIA ONDINA descaindo cada
vez mais para o sul, tocou na primeira restinga, onde se deteve uns escassos
minutos com estremecimentos que se propagavam desde a quilha aos mastaréus. Depois
libertado por uma volta de mar maior, soergeu-se num esforço de ser vivo ferido
de morte que quer lutar ainda para viver.
Mais
adiante novo encalhamento. Caíu sobre a sua língua de areia, que prolonga a
restinga pelo mar dentro, o fatídico banco da barra. O seu estremecimento – notaram-no
todos - foi maior, mais duradouro, e mais lento. Denunciava o cansaço e o
desalento de moribundo que vê toda segurança perdida. O mar ergeu-o, uma
segunda vez – e foi depô-lo, agora definitivamente sobre o banco de areia, onde
o deixou, finalmente à sua inteira mercê.
Entretanto,
dois homens que haviam ficado a bordo, que os bravos homens da lancha de
pilotos não tinham podido salvar, o capitão e o seu imediato, agitavam os
braços num apelo angustioso para que alguém os socorresse. Mas o mar, naquele
local, não permitia que qualquer embarcação se aproximasse.
Dois náufragos no cais do Marégrafo da Cantareira, no meio da foto distingue-se o piloto Aristides Pereira Ramalheira.
Os
movimentos que, então, viveram quantos assistiram ao pavoroso quadro não se
descrevem. Como se cada pessoa tivesse naqueles dois homens lá longe entregues
ao seu destino, um parente querido, um pai, um irmão, todos chamavam e imploravam
que alguém os fosse buscar, e os livrasse da morte certa inevitável.
O barco
salva-vidas da estação da Afurada, que saiu para o mar, logo após o alarme, tentou,
então, a ousada empresa. À força de remos, correndo a todo momento o risco de
ir esmagar-se contra o MARIA ONDINA, procurou, a sua equipagem, aproximar-se o
mais possível, resultando vãos todos seus esforços. Foi uma luta titânica,
emocionante, que ninguém deixou de acompanhar angustiado ante a iminência do
perigo e empolgando perante a grandeza de alma daqueles quinze homens simples e
corajosos.
O
salva-vidas da estação da Foz do Douro, foi o primeiro a fazer-se ao naufrágio,
capitaneado pelo seu patrão Zé Bilé e como sota, o piloto José Fernandes Amaro
Júnior, mas teve de regressar à Cantareira por indisposição de dois remadores.
A ideia daqueles dois homens era saírem a barra e contornar o MARIA ONDINA pelo
lado sul, onde a ondulação era menor, e tentar a abordagem ou aguadar que os
dois oficiais se lançassem à água, e recolhê-los. Operação essa realizada com
êxito, um pouco mais tarde pelo salva-vidas do centro piscatório da Afurada.
Os
bombeiros, tanto os Sapadores do Porto, como os Voluntários do Porto e os Portuenses,
como os Voluntários de Matosinhos-Leça e os de Leixões, que compareceram com
material adequado para socorros a náufragos, prestaram também serviços dignos
de todo o louvor.
A Lancha
dos Pilotos P4 trouxe para terra os nove homens da tripulação do MARIA ONDINA,
e estes, não podendo acreditar na possibilidade do seu capitão e imediato
perecerem, juntaram ao das outras pessoas o seu apelo para que esses dois
homens fossem salvos.
Muitas
embarcações dos pilotos e particulares transportavam os bombeiros e seu material
desde a Cantareira para o areal do Cabedelo.
A única
possibilidade que então, se apresentava, era a do salvamento ser tentado por
meio de um cabo de vai-vem a estabelecer entre terra firme e o navio encalhado.
Era esta, a tarefa que se encarregaram sem perda de tempo, os Voluntários de
Matosinhos-Leça, sob as ordens do seu segundo-comandante António Neves.
Valiosamente
coadjuvados pelos pilotos e por bombeiros do Batalhão de Sapadores Bombeiros,
foram lançados, para bordo três foguetões. O primeiro não alcançou o barco; o
segundo, por a espia haver partido não teve sucesso. Finalmente, o terceiro
atingiu um dos mastros, ao qual a espia ficou presa. E um grito de alívio saiu
da boca dos circunstantes.
O perigo
para os dois homens que estavam a bordo aumentava de momento a momento, grandes
vagas, caindo sobre o convés, varriam-no e tornavam arriscadíssima a manobra
para o estabelecimento do cabo de salvação. Então os dois homens, após um sinal
feito aos tripulantes do salva-vidas da Afurada, que continuavam a esforçar-se
para não se afastarem do local, resolveram lançar-se á água.
Novos e
indiscritíveis momentos se viveram. Poderia ser aquele, o último acto da
tragédia.
Graças. Porém,
à dedicação dos bravos pescadores da Afurada, do patrão Maximino Ferreira, que
capitaneava aquela equipa de obscuros heróis, a sanha do mar foi vencida ainda
uma vez mais. E os dois homens puderam ser retirados da água. Poupados ao mar
que estivera para ser seu epulcro.
A lancha
dos pilotos foi ao encontro do salva-vidas, e o trouxe a reboque para as
escadas dos Pilotos, no cais do Marégrafo.
E centenas de populares saudaram os náufragos e os
seus valentes salvadores: Os dois homens retirados da água, exaustos e
encharcados, foram tratados pelos tripulantes do salva-vidas com extremoso
carinho. Os pescadores da Afurada despojaram-se das suas roupas para que eles
se vestissem e se agasalhassem. Mas isso não chegou
a que chegassem a terra em estado de algidez trespassados pela frialdade da
água.
Os
Voluntários do Porto transportaram-nos logo ao Hospital Geral de Santo António
numa auto-ambulancia. E, naquela casa hospitalar, os médicos de serviço drs.
Manuel de Araújo e Lemos Ferreira, auxiliados pelos enfermeiros Seixas e
Isaías, prodigalisaram-lhes todos os cuidados. Foram-lhes fornecidos café bem
quente e “cognac”.
Depois de
restabelecidos, foram levados aos escritórios da firma consignatária do lugre,
M. Almeida & Santos Sucrs., da Rua Nova da Alfandega, 36, onde se reuniram
os outros membros da tripulação: Jerónimo Luis Fernandes, António Soares
Vilhão, Amadeu Teixeira, Horácio Sarmento Fernandes, Manuel Domingos Pata,
Manuel de Jesus Rocha, Manuel Bitata, Manuel Gomes Soares e Jerónimo Mesquita
Fernandes. Com excepção do Amadeu Teixeira, que é de Celorico de Basto, do
Jerónimo Fernandes, que é de Viana do Castelo, e do Manuel Gomes Soares, que é
de Vila Nova de Gaia, todos os outros são de Ilhavo, de onde são também, o
capitão Belarmino de Oliveira, e o imediato Marçal Santos Saltão.
José da
Silva Mendonça, gerente da firma consignatária do MARIA ONDINA, prestou aos
náufragos toda a assistência de que eles careciam. Além de lhes oferecer bom
vinho velho do Porto, forneceu-lhes vestuário, calçado e tabaco,
facultando-lhes ainda, o telefone para comunicarem às suas famílias o feliz
desfecho da sua aventura.
O salva-vidas VISCONDE DE LANÇADA, da estação da Foz do Douro.
A bordo do
MARIA ONDINA, que o mar deve agora desfazer mais ou menos lentamente, se não ocorrer alguma tempestade que abrevie o seu fim, ficou um pobre cão. A
tripulação antes de abandonar o barco, tentou trazê-lo consigo, mas não o
conseguiu.
Nos
escritórios da firma M. Almeida & Santos Sucrs, enquanto aos náufragos era
prestada toda a assistência pelo seu gerente, o capitão do MARIA ONDINA falou à
imprensa sobre a história da sua aventura: Belarmino de Oliveira, de 50 anos de
idade, natural de Ilhavo, residente na Rua Visconde da Granja, Aveiro, disse
aos jornalistas:
- Chegamos
à barra à duas horas da madrugada. Levantámos ferro de Setúbal, com um carregamento
de 550 toneladas de adubos ensacados. A viagem, embora com pouco mar, fez-se
normalmente. Há hora da maré, metemos piloto e entramos a barra. O imediato
Marçal dos Santos Saltão, de 46 anos, residente em Lisboa, na rua São João da
Maia, acrescentou:
- Os “estoques de água” eram
grandes. O açoreamento do colo da barra, devido á “ronheta”, fez encalhar o
barco. Eu e o capitão ficamos a bordo. O nosso receio era a de que o barco se
se atravessasse e, com o mar que fazia eramos arrastados. Assim, atiramo-nos ao
mar e nadamos.
O capitão,
com timbre, falou do MARIA ONDINA:
- Meu rico
barco disse ele, há cinco anos que andava embarcado, e portou-se sempre bem. A
força da água, os “estoques da água” e insuficiência da barra, fê-lo guinar
para o sul, e perdeu-se.
O
rebocador fluvial MERCURIO 2º ainda chegou a vir à barra, mas já era tarde
demais.
O piloto
Jaime da Silva Martins, durante a sua vida de prático da barra, foi protagonista
de dois outros encalhes: 1954 navio-motor Português COLARES encalhado no cais
do Touro, quando demandava a barra já com uma hora de vazante, e na década de
60 foi a vez do navio-motor Norueguês SILJA, frente a Sobreiras, devido ao
denso nevoeiro, quando ia de largada.
MARIA ONDINA – data base, ver episódio no. 253
Fontes:
José Fernandes Amaro Júnior, jornal O Comercio do Porto.
Imagens:
Jornal O Comércio do Porto.
(continua)
Rui Amaro
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I appeal for your comprehension and authorizing the continuation of the same on
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