A SAIDA Á VELA ATRIBULADA DO PALHABOTE “AFONSO” DO PORTO DE LEIXÕES
Postal ilustrado mostrando um palhabote à vela demandando a barra do rio Douro por volta de 1900 .
Descrição textual do piloto José Fernandes Amaro Júnior, relacionada com o seu serviço ao palhabote à vela Português AFONSO, na manobra de saída do porto de Leixões. Este navio fora construído no ano de 1900 na Gafanha da Nazaré, por Manuel Maria Bolais Mónica.
«A 26/03/1933, dia de nortada forte, encontravam-se ancorados na bacia do porto de Leixões alguns vapores realizando operações comerciais, dos quais se destacavam o paquete Holandês ZEELANDIA em viagem de Amesterdão e portos da Galiza para a costa Leste da América do Sul, o vapor Americano SAHALE procedente do Golfo do México com destino ao Mediterrâneo, o NRP IBO, canhoneira da fiscalização das pescas e mais três navios à vela, que aguardavam melhoria de tempo favorável para se fazerem aos seus portos de destino e destes constava o palhabote AFONSO, 30m/133tb, com um carregamento completo de madeira.
Aquele palhabote, ancorado no quadro do Norte, acabara de pedir piloto para deixar o porto, e por ordem do cabo-piloto Paulino Soares Biltes, embarquei na lancha P3, que me transportou ao navio. Ás 13h00 subo a bordo e encontro o navio com o ferro de bombordo dentro e o de estibordo no fundo com uma manilha e meia ao molinete.
Orientar a manobra de um navio à vela por entre muitas embarcações, nomeadamente vapores fundeados num espaço restrito, como se compreenderá é deveras complexo e arriscado, apesar da experiência já de há muito tempo adquirida. A vela do traquete estava içada. Olhei para o jeito, que o navio fazia devido à nortada desabrida e falei ao mestre para arriar a dita vela, para evitar o descaímento sobre o NRP IBO e também lhe disse para suspender o ferro. Passou-se um cabo à lancha de maneira a sossegar o navio aproado ao vento mas como começasse a seguir por de roda sem pano algum, mandei a lancha puxar para estibordo, infelizmente o lais de guia do cabo pegado à popa da lancha, desfez-se e nunca mais a lancha conseguiu segurar o navio e este começou a derivar para leste.
Na parte norte estava fundeado o SAHALE e por terra o ZEELANDIA. Como o palhabote estivesse a descair para cima do vapor americano, mandei içar o traquete e aguentei-me à roda do leme, fazendo rodar o navio todo para bombordo, além de mandar içar a vela grande e assim conseguiu-se navegar safo dos dois vapores mas como o palhabote não desandasse por de vante, disse ao mestre para preparar o ferro para ser largado próximo da praia da Sardinha. Logo de seguida, ouço alguém à proa a gritar para que se largasse o ferro. Então, corri para a proa e dei ordem em contrário até eu decidir e fiz ver, que as ordens de manobra dentro dos limites da área de pilotagem portuária são da responsabilidade do piloto da barra, que como se sabe é o prático do porto.
Postal ilustrado do porto de Leixões, anteriormente à construção da doca nº 1, vendo-se o porto de Serviço e Bacia. Entre os vapores e paquetes em operações comerciais, destaca-se o Americano SAHALE junto da embocadura do porto.
Deixei o navio seguir, de maneira a não se atravessar na proa do ZEELANDIA, quando vi que já estava safo mandei largar o ferro e arriar o pano todo mas o mestre foi de opinião, que não haveria necessidade de arriar a vela grande. Daí a poucos minutos apareceu a lancha P1 para rebocar o navio, vindo a bordo o cabo-piloto Paulino Soares Biltes, acompanhado dos pilotos Júlio Pinto de Carvalho e Manuel Pinto da Costa. Passado o cabo de reboque, um virador reforçado, à lancha grande e um cabo singelo à lancha pequena, dei ordem para suspender o ferro e as duas lanchas puxaram o navio para norte. Mandei içar as velas da proa e o traquete e com as lanchas a posicionar o navio um pouco para sul, folgou-se as escotas. O navio tomou seguimento mas não obedecia ao leme e ia direito ao vapor SAHALE e digo eu. Valha-me Deus, que colisão esta! Mandei arriar os piques do traquete e da vela grande mas não via maneira do navio obedecer ao leme. O navio seguiu a rastejar a fragata BOA UNIÃO, que estava a receber carga daquele vapor. Meteu o bote da fragata no fundo, acabando por embater numa barca carregada de algodão e o barco dos estivadores seguiu pegado ao palhabote até por fora dos molhes.
Saltei para a lancha P3 com o palhabote AFONSO de capa ao vento, o qual prosseguiu a navegação à bolina e pouco depois tomou o rumo de sudoeste. A lancha P1 trouxe a reboque o barco dos estivadores, que por sorte não sofreu qualquer avaria. A fragata e a barca sofreram danos de pouca monta. Chegados a terra às 15h00, eu e o cabo-piloto fomos à Capitania dar parte do incidente ao patrão-mor, no entanto jamais fui chamado à presença do capitão do porto».
Aquele piloto contava ao autor, que já passara por experiências, com navios à vela e recordava-se de um ano antes ter embarcado ao largo da barra do Douro num palhabote à vela Inglês da praça de S. João da Terra Nova, julgamos ter sido o MARK H. GRAY, 30m/163tb, e, enquanto esperava pela maré para 15 pés de água e pelo rebocador, deixou o navio continuar a navegar â bolina com o pano todo em cima, visto não ter necessidade de fundear por tão pouco tempo e também devido à forte nortada, que se fazia sentir.
Chegado o rebocador MARS 2º, a cerca de duas milhas para oés-sudoeste da barra, estabeleceu-se o cabo de reboque e então foi-se reduzindo o pano, ficando apenas a vela do traquete e uma vela de proa, a fim de auxiliar o rebocador, uma vez que se navegava a sotavento da barra. Este tipo de embarcação de vela é bastante veloz, e então o palhabote começou a ganhar avanço, pelo que em pouco tempo posicionou-se a par e por estibordo do rebocador.
O mestre do MARS 2º, como é evidente, estava a ficar em apuros e como assim, começou a apitar para que se arriasse o restante velame. Entretanto, a tripulação tratou de recolher o pano e o rebocador desandou por barlavento, metendo-se de capa ao vento com o palhabote pela popa, contudo logo que as velas foram recolhidas rumou-se à barra e foi-se amarrar o navio, junto das escadas das Padeiras, Ribeira do Porto, onde o navio descarregaria a partida de “stock fish”, que transportava nas suas escotilhas desde o seu porto de registo. Naquele ancoradouro encontravam-se outros palhabotes, iates e lugres Ingleses da Terra Nova ou dinamarqueses realizando operações de descarga de bacalhau vindo daquela província do Canadá ou da Islândia.
Postal ilustrado mostrando um palhabote e dois lugres ingleses de S. João da Terra Nova amarrados nas escadas da Padeira, Ribeira do Porto, aguardando as suas descargas de bacalhau seco.
Baseado no modelo do casco e aparelho daqueles palhabotes e iates originários da Terra Nova, Nova Escócia e do Massachussetts, que pescavam ou transportavam bacalhau e de regresso da península Ibérica levavam sal ou outro tipo de carga, indo mesmo ao sul de Espanha, sobretudo a Alicante, carregar frutas, é que foram projectados os três lugres a motor bacalhoeiros de quatro mastros Portugueses SANTA MARIA MANUELA. CREOULA e ARGUS, construídos no ano de 1937.
O palhabote é um navio de dois mastros de velas latinas, com um mastaréu em cada mastro e à proa usa um pau da bujarrona, conquanto o hiate ou iate não tem mastros guarnecidos de mastaréus. No entanto, os mais recentes já não ostentavam o característico pau da bujarrona ou mesmo gurupés e muitos já possuíam motor auxiliar.
Fontes: José Fernandes Amaro Júnior
(continua)
Rui Amaro