sexta-feira, 3 de julho de 2009

SUBSIDIOS PARA A HISTÓRIA DA CORPORAÇÃO DE PILOTOS DA BARRA DO DOURO E PORTO ARTIFICIAL DE LEIXÕES - Episódio 5


UMA MANOBRA DE DESAMARRAÇÃO EMBARAÇOSA





Narrativa textual do piloto José Fernandes Amaro Júnior, relacionada com o seu serviço de saída do lugre dinamarquês NORDTRAFIK.
A 26.09.1927, pelas 10h00, fui dar saída ao lugre à vela de três mastros NORDTRAFIK, amarrado diante da prancha do Jones, margem de Gaia. Iniciada a manobra de largada, sucedeu que o ferro da popa estava por baixo do lugre inglês da praça de S. João da Terra Nova GENERAL WOOD e do palhabote da mesma nacionalidade e praça MAXELL-M, e como tal numa posição muito difícil de o colher. Em face da situação mandei a catraia dos pilotos tentar cambar o ancorote por baixo dos dois navios, colocando-se a beta ao gaviete e talhar mas pouco ou nada adiantou. Então pedi ao imediato do GENERAL WOOD para virar o brando da amarra do seu navio, porque se encontrava bastante folgada e assim se procedeu virando cerca de uma manilha, malgrado não se conseguir libertar a amarra debaixo dos dois navios.
À hora combinada, aproximou-se o rebocador BURNAY 2º, que iria rebocar o navio até fora da barra e o mestre Marcelino Justino disse-me, que não poderia esperar por muito tempo, porque tinha uma fragata para levar ao porto de Leixões, sem demora. Passado algum tempo e ainda sem se conseguir safar o ancorote, pedi ao mestre do rebocador para aguardar mais um pouco, o qual me deu de resposta que não poderia esperar mais tempo. Então chamei o capitão e o empregado da agência e fiz-lhes ver que o melhor seria cortar a beta e amarrar o ancorote ao GENERAL WOOD, porque caso contrário teríamos grande demora e sem rebocador e falta de maré o navio não poderia largar. O capitão concordou com a minha sugestão e então ordenei ao pessoal da catraia para proceder de conformidade.
O BURNAY 2º estabeleceu a amarreta, virou-se os ferros à proa, recolheu-se os cabos de terra e desandando o lugre, rumou-se à barra, que a cruzou às 13h40, sob vento fresco do quadrante Norte, já com o pano todo largo desde as bóias dos Arribadouros e após eu desembarcar para a lancha P4, o rebocador continuou a conduzir o lugre, largando-o a cerca de uma milha da barra do Douro, aproando aquele a Noroeste de rumo ao porto de S. João da Terra Nova.
Nesse mesmo dia dei parte ao piloto-mor Francisco Rodrigues Brandão e também comuniquei ao agente consignatário do lugre, a firma Blackett & Ca., Lda sobre o sucedido, além de informar que deixara indicação ao Estêvão dos Ferros para recuperar o ancorote. Ao outro dia, indaguei do José do Conde, arrais da catraia, se tinham conseguido recolher o ancorote, o qual me disse que, possivelmente de bordo do lugre Inglês desamarraram a beta ou alguém se apropriou do ferro, pelo que não foi possível encontrá-lo.
Quanto ao historial do lugre NORDTRAFIK desconheço-o, apenas sei que embora de nacionalidade dinamarquesa fazia armamento na Terra Nova como muito lugres daquela nacionalidade, ou porque eram propriedade de armadores terranovenses ou de dinamarqueses lá estabelecidos.
O lugre GENERAL WOOD era um dos gemeos do PAÇOS DE BRANDÃO ex GENERAL RAWLINSON.
Gravura de um lugre-escuna ignora-se o autor do desenho.
Rui Amaro

terça-feira, 30 de junho de 2009

SUBSIDIOS PARA A HISTÓRIA DA CORPORAÇÃO DE PILOTOS DA BARRA DO DOURO E PORTO ARTIFICIAL DE LEIXÕES - Episódio 4


UMA SAÍDA DO DOURO VERDADEIRAMENTE ATRIBULADA

Narrativa textual do piloto José Fernandes Amaro Júnior, relacionada com o seu serviço de saída do vapor português VILLA FRANCA, já como piloto provisório, no qual sofreu um enorme sobressalto.
A 12.02.1927, pelas 11h00, encontrava-me ao primeiro da esquadra de dentro, pelo que o piloto-mor José Pinto de Almeida (Pantaleão) comunicou-me, que o vapor VILLA FRANCA amarrado no ancoradouro do Quadro da Alfandega ficaria pronto para sair às 16h00 e também me disse para ir com alguma antecedência para bordo, porque o vapor inglês DARINO estava por terra e iria largar mais cedo.
Então, combinei com o meu colega Elísio da Silva Pereira, que iria dar saída ao DARINO para seguirmos para cima, após o almoço. Às 12h30 embarcamos na catraia, que nos conduziu para bordo dos dois vapores. Chegado a bordo do VILLA FRANCA, o seu imediato disse-me que o comandante estava para terra na agência consignatária. Então fiz-lhe ver, que não podíamos esperar pelo comandante porque o DARINO, que estava amarrado por terra ia começar a manobrar e largar antes de nós, pelo que teríamos de virar os ferros e arriar os cabos para lhe dar passagem. Aquele oficial a principio não estava muito de acordo em iniciar a manobra devido à ausência do seu comandante mas acabou por dar ordem ao contramestre para acatar as minhas ordens. Folgados os cabos e virados os ferros, ficando o de estibordo com uma manilha ao lume de água até a estiva completar o carregamento. Após o DARINO ter ido para o meio do rio para desandar, encostamos mais à terra. Neste dia iam passar a barra de entrada os vapores ingleses PROCRIS, POLMANTER e SILVIO; noruegueses ALA e SONJA e de saída o inglês ESTRELLANO e o português MOURÃO.
Às 16h00 veio para bordo o comandante, juntamente com o agente David José de Pinho e os seus dois filhos Jaime e José. Eu fiz-lhes ver para apressarem o embarque da carga, porque teríamos de passar a barra, o mais tardar às 17h30. Entretanto o mestre estivador Izauro disse-me, que podia colocar o vapor em franquia porque não embaraçava o carregamento nem a manobra das barcas. Sendo assim mandei um remador da catraia à terra para tratar de largar os cabos.
Nesse momento, subia o rio o SILVIO, piloto Manuel Pinto da Costa, que vinha ocupar o lugar do meu vapor. Como eu tinha o ferro na água e ainda estava a meter carga, disse-lhe para ir prolongar com o alemão ATLAS, que estava por Leste, até que eu largasse e aquele meu colega assim procedeu. Infelizmente lançou o ancorote da popa junto da proa do meu vapor. Terminado o carregamento e desembarcado o pessoal de terra, mandei virar o ferro e quando este apareceu ao lume de água vinha pegado com o ancorote do SILVIO, tendo-se perdido bastante tempo para o desenrascar.
Após virar o ferro da proa e o ancorote dos pilotos à popa, fui tentar desandar pela ré do vapor inglês TORCELLO, não tendo tido sucesso fui de máquina à ré, até conseguir desandar a oeste da Cábrea. Quando estava a manobrar para desandar vem rio acima o SONJA, piloto João António da Fonseca, sempre a apitar para eu lhe dar passagem, quando deveria aguardar em Massarelos, que eu manobrasse de proa abaixo, pelo que ao passar por ele chamei-lhe à atenção para esse facto.

O vapor VILLA FRANCA amarrado no porto comercial do Douro, lugar do Quadro da Alfandega, vendo-se as caracteristicas barcas ou barcaças utilizadas nas operações de carga e descarga / (c) foto de autor desconhecido da colecção de F. Cabral/.

Quando o VILLA FRANCA ficou de proa abaixo, ordenei toda força avante, a fim de conseguir passar a barra ainda com dia. Diante do lugar do Guindaste Eléctrico ordenei leme um pouco a bombordo, e qual foi o meu espanto, a proa estava a rodar para estibordo e como tal repeti a ordem ao comandante e chamei à atenção do homem do leme. Que muito aflito, exclama. O vapor está sem governo, tem o leme trancado a estibordo! O vapor vai sobre a prancha dos Pescadores, pelo que eu grito para o comandante, força toda à ré e largar os dois ferros, a fim de estancar o seguimento avante e aguentar a proa para bombordo. As correntes dos ferros até faziam chispa. Eu disse para a proa para aguentar e arriar devagar e vejo o pessoal, que se encontrava na descarga do peixe dos vapores de pesca, a gritar e a fugir por terra dentro. Um verdadeiro pandemónio.
Atracados à prancha encontravam-se o vapor de pesca FAFE, a traineira da Afurada PRAZERES 2º e o rebocador BURNAY 2º, cujo pessoal a bordo daquelas embarcações não ganharam para o susto e eu também. Na minha ideia já julgava, que alguma embarcação se estivesse a arriar para o fundo e já houvesse feridos e mortos mas de bordo do FAFE fizeram-me sinal de que não chegara a haver qualquer colisão, embora tivesse sido por uma unha negra, que assim não sucedeu. Felizmente tudo estava em ordem e não passara dum enorme susto.
Logo de seguida o vapor foi ao meio do rio e depois do comandante se ter exaltado com o chefe de máquinas por não ter verificado e experimentado a máquina do leme antes do início das manobras e aquele oficial a desculpar-se e a dizer, que o assunto não era de sua responsabilidade, a avaria da máquina do leme foi reparada. Com o incidente perdeu-se tempo precioso para se passar a barra com dia e o comandante insistia comigo para eu dar saída. Eu disse-lhe que não dava saída ao vapor, porque se perdeu muito tempo, todavia se seguisse em frente, iria passar a barra já ao escurecer mas de certeza o piloto-mor negava a saída e teríamos de manobrar junto das bóias da Cantareira a fim de regressar ao ancoradouro. A barra estava muito esganada e havia alguma ondulação que faria perigar uma boa navegação, além de ter de passar muito encostado às pedras da margem norte e a bóia da Ponta do Dente, à entrada da barra, há alguns dias que o mar a levara.
O comandante sempre a insistir para se sair, fazendo-me ver já ter bastante experiência pelos seus muitos anos de barra do Douro e que sabia o piloto capacitado, que eu era e até pela manobra rápida, que eu tinha realizado, evitando uma tragédia, de consequências incalculáveis, pelo que não deixaria de registar no diário de bordo, além de dar conhecimento desse facto à sua companhia e ao agente. Eu continuei a dizer-lhe para não insistir na saída e que íamos tratar de virar proa acima e amarrar. Suspendeu-se os ferros, contudo o ferro de bombordo veio pegado com o do FAFE, porque mais uma vez se teve de perder algum tempo para o safar. Findo esse imprevisto fomos amarrar, logo ali perto, no lugar do cais das Pedras.
Entretanto, alarmado com a situação, subiu a bordo o Jaime Pinho da agência, tendo sido esclarecido pelo comandante, sobre o motivo do vapor não ter saído e também lhe disse, que eu não tivera qualquer responsabilidade no incidente, muito pelo contrário realizara uma rápida e eficiente manobra e também lhe disse, que apenas me recusara a dar saída ao vapor, porque de facto eu tinha as minhas razões e só por aí se via a minha competência, não se esquecendo de ordenar que a usual gratificação fosse bastante acima dos habituais 10$00 da praxe. O comandante perguntou-me se o vapor teria saída no dia seguinte ao alvor. Eu fiz-lhe ver, que só o piloto-mor se poderia pronunciar sobre o assunto e também lhe disse, que após o serviço eu iria ter com ele para lhe dar conhecimento do incidente. O comandante mostrou-se interessado em vir à Foz falar com o piloto-mor e viemos no automóvel do Jaime Pinho. Chegados à Foz, fomos ao encontro do piloto-mor José Pinto de Almeida (Pantaleão), que estava em amena cavaqueira com alguns amigos, entre os quais o farmacêutico e o seu irmão, o piloto António Pinto de Almeida (Pantaleão) naquele local usual de tertúlia, a Farmácia Lamas, à rua so Passeio Alegre. Esclareci-o sobre o incidente, ao que ele retorquiu. Isso foi um autêntico milagre! Tendo o comandante acrescentado, milagre e também mestria do seu subalterno. O piloto-mor lamentou mas apenas poderia autorizar a saída para as 16h00, porque de manhã não havia maré e assim ficou combinado, tendo o comandante regressado a bordo e eu fui para minha casa, onde cheguei às 19h45.
No dia seguinte, pelo meio-dia, o piloto-mor disse-me para retomar o serviço de saída do VILLA FRANCA e recomendou-me, que tivesse muito cuidado não fosse o leme esquentar outra vez mas logo que chegasse a bordo, verificasse o calado de água exacto e o informasse por telefone. Chegado junto do vapor, verifiquei o calado de 15 pés e 8 polegadas e mandei um remador a terra informar o piloto-mor por telefone, o qual lhe comunicou para eu largar da amarração às 16h00. Então, sabendo que o comandante ainda não se encontrava a bordo, disse ao imediato para ter a máquina pronta às 15h00 e verificar se a máquina do leme funcionava em pleno. Entretanto, foi-se tratando de colocar o vapor em franquia, ou seja largar cabos de terra, deixar apenas um ferro à proa e o ancorote da popa no fundo.
Às 15h00 o comandante acabara de vir de terra e eu fiz-lhe ver, que às 16h00 teríamos de começar a desandar, a fim de seguirmos para a barra, ao que ele me respondeu, após indagar do oficial imediato, que estava tudo em ordem e pronto a manobrar e também me disse, que no escritório da agência voltara a lembrar ao Jaime Pinho para não se esquecer de reforçar a gratificação. Entretanto, os vapores de menor calado: português MOURÃO, piloto Francisco Piedade; alemão ATLAS, piloto Afonso da Costa Pinto e o norueguês ALA, piloto Eurico Pereira Franco, que pouco antes tinham iniciado as manobras de largada, estavam a passar por mim a caminho da barra, pelo que virei o ferro e o ancorote e desandei proa a jusante, tendo então seguido para a barra de marcha devagar avante, não fosse o leme esquentar outra vez mas também para dar tempo da maré. No lugar do Ouro já iam à minha frente o petroleiro SHELL 15 e um americano da Socony Vacuum, de muito maior porte, que tinham acabado de largar das respectivas instalações petrolíferas da Arrábida. Quando passava diante da capela do Senhor dos Navegantes, vinha de entrada o alemão BILBAO, piloto José Fragateiro, que apitou a pedir bombordo e eu respondi com o mesmo sinal mas visto ambos os vapores serem bastante compridos, ordenei leme a estibordo e fui passar pelo Norte da bóia da Cantareira, porque pelas minhas referências, no local havia água suficiente devido às marés grandes e às 17h30 transpunha a barra debaixo de alguma vaga alterosa, vento sul e muita chuva.
O VILLA FRANCA às 18h20 entrava na bacia do porto de Leixões, a fim de me desembarcar mas para colocar o vapor no enfiamento de saída entre os molhes, disse ao comandante para largar o ferro de estibordo, a fim do vapor desandar sobre o mesmo e o comandante convencido, que conseguia manobrar sem ajuda do ferro, disse-me que não havia necessidade, porque desandava com o auxilio da máquina e então insisti com ele para largar o ferro, porque na bacia havia muita ondulação e vento, além de se encontrarem alguns navios fundeados, o que causava reduzido espaço de manobra. Entretanto, acabou por me dar razão e aceitar a minha ordem. Largado o ferro e logo que o vapor aproou ao enfiamento, saltei para a lancha P3, na qual já estavam os pilotos dos vapores, que saíram a barra do Douro antes de mim e o vapor seguiu o seu destino sem mais novidade. Este foi um serviço bastante atribulado e que durou dois dias. Os agentes, David José de Pinho & Fos, Lda, conforme o solicitado pelo Cdte. Dionísio do vapor VILLA FRANCA, gratificaram-me com a quantia de 30$00.
(c) Desenho de perfil do vapor VILLA FRANCA de autor desconhecido

O VILLA FRANCA, 85m/1.781tb e 2.045tb, 10 nós, 3passageiros, foi lançado à água em 1906 pelo estaleiro alemão G. Seebeck Aktien Ges., Geestemunde, sob o nome de ARKADIA para o armador Dampfer Linie Atlas Ges., Bremen, tendo sido vendido em 1910 ao armador Deutsche Levante Linie, Hamburgo. Em 08/1914 internado no estuário do Tejo devido à situação de guerra e em 1916 foi apossado pelo governo português, juntamente com outras unidades da marinha mercante alemã. Mais tarde foi integrado na frota da então, recém formada empresa Transportes Marítimos do Estado (TME), recebendo o nome de ESPOSENDE, tendo servido aquela empresa, contudo realizou várias viagens ao sob gestão da FurnessWithy, Reino Unido. Em 1921 foi colocado no serviço costeiro Moçambique/África do Sul. A 01.06.1924, em leilão das unidades daquela empresa estatal (TME), foi adquirido por Cristiano Frazão Pacheco, que o integrou na frota da Companhia de Navegação Carregadores Açoreanos, Ponta Delgada, tendo sido registado na capitania do porto de Ponta Delgada em 24.08.1924 com o nome de VILLA FRANCA. O seu armador colocou-o no tráfego do norte da Europa com escalas nos principais portos dos Açores e ainda nos portos do Funchal, Lisboa e Douro/Leixões. Devido à guerra de 1939/45 passou para a nova linha dos EUA e realizou viagens eventuais à Terra Nova para carregamentos de bacalhau seco. Em 1949 foi vendido à Companhia Marítima Africana, registado no Panamá, mantendo o mesmo nome. Em 1951 foi adquirido pelo governo romeno, passando a denominar-se OCTOMBRIE ROSU e foi desmantelado na Roménia em 1960. No pós-guerra 1939/45 recordo-me de o ter visto com o nome alterado para VILA FRANCA.
Fontes: Merchant Fleets/Furness Withy, Miramar Ship Index, Plimsoll Ship data-LR e A.A. de Moraes.
(continua)
Rui Amaro