sábado, 15 de agosto de 2009

SUBSIDIOS PARA A HISTÓRIA DA CORPORAÇÃO DE PILOTOS DA BARRA DO DOURO E PORTO ARTIFICIAL DE LEIXÕES – Episódio 11


UMA QUESTÃO DE CALADO DE ÁGUA E MUITA PRÁTICA DO RIO NA SAIDA DO VAPOR ALEMÃO "ARION"

O vapor ARION no porto de Bremen - (c) 100 Jahare DG Neptun - colecção F. Cabral.

Narrativa textual do piloto José Fernandes Amaro Júnior, respeitante ao seu serviço de condução de saída do vapor Alemão ARION.
«A 08.01.1929, pelas 09h00, na estação de pilotos da Cantareira foi recebido um telegrama, pedindo piloto para dar saída ao vapor Alemão ARION, 87m /2.297tb, o qual após as manobras de desamarração, iria completar o seu carregamento com uma pequena parcela de carga de substâncias perigosas, diante do lugar do cais do Cavaco, ancoradouro próprio para este tipo de operações.
Chegado a bordo, às 10h30, no quadro da Alfandega, informei o comandante da melhor forma de proceder à manobra a realizar e fui dizer ao imediato para mandar arriar à popa, o cabo de arame do ancorote dos pilotos de maneira a ficar safo dos ferros do vapor Norueguês TEJO, que estava amarrado pela popa. Depois do cabo de arame liberto, mandei um remador da catraia dos pilotos ir a terra para largar um cabo de proa e indaguei do imediato acerca do calado de água e como ele ainda não tinha anotado, apressou-se a ir verificar, infelizmente da borda do vapor e pouco depois veio-me informar, que à proa marcava 14,5 pés e à popa 14,3 pés e eu tive de aceitar aqueles números, porque o imediato tem de ser um oficial bastante responsável. Entretanto, o mestre estivador veio-me dizer, que tinha terminado a carga e como tal já podia desamarrar e desandar o vapor.
Então, principiei a manobrar, porém devido ao comprimento do ARION fui desandá-lo, com o auxílio do rebocador DEODATO, ao lugar da Cruz, um pouco a montante, porque junto do quadro da Alfandega e nas duas margens estavam outros vapores amarrados, entre os quais o Norueguês TEJO e os Ingleses DRAKE e TORCELLO. Conduzi o vapor com a máquina a trabalhar devagar avante até ao dito lugar do Cavaco, diante de Massarelos e passado pouco tempo, após ter-se metido a restante carga, seguiu-se rio abaixo, a meia força avante.
Já próximo da capela do Snr dos Navegantes, o rio levava bastante corrente de água de enchente e como tal o vapor desobedecia ao leme. Então mandei dar mais força na máquina a ver se assim governava melhor mas tudo na mesma. O comandante perguntou-me se íamos passar pelo Sul ou pelo Norte da bóia da Cantareira e eu disse-lhe para meter leme pelo Norte, porque aí a corrente era mais fraca. Corrente essa, que se desenvolvia devido ao bico do Cabedelo, diante da pedra da Gamela, se encontrar muito a Norte e baseando-me na pedra da Eira, que devido à maré-alta se encontrava bastante afogada e por imensa prática sabia, que naquelas condições tinha água suficiente para o calado fornecido pelo imediato. Aliás, era um procedimento normal devido aos jeitos de água em certas circunstâncias, dependendo do calado de água dos vapores. Quando o vapor passava já diante da pedra da Eira bateu, levemente a meia-nau, por duas vezes no fundo do rio, todavia sem causar problemas de maior. Eu e o comandante ficamos bastante apreensivos e fiquei a duvidar dos valores do calado de água dados pelo imediato ou da existência de qualquer corpo estranho submerso.
Passado aquele imprevisto, o vapor seguiu a toda a força avante, a fim de governar e ao chegar perto da restinga, devido ao Cabedelo se encontrar espraiado a Norte, bateu por duas vezes com o bojo na areia e guinou direito à ponta do Dente. De imediato, ordenei leme a bombordo e quando o vapor obedeceu para esse bordo, mandei aliviar o leme, a fim de não ir bater com a popa na pedra da Forcada. O ARION saiu a barra à 12h55, rumando aos portos de Lisboa e Bremen.
Antes de desembarcar para a lancha P4, O comandante perguntou-me do motivo de eu ter conduzido o vapor pelo Norte da bóia e não pelo Sul. Lá lhe dei os esclarecimentos necessários mas também lhe disse, que em outros serviços e com o calado de água igual ao registado pelo seu imediato, calado esse, que não deveria estar certo, sempre que havia motivo para isso, fazia-o pelo Norte da bóia. Porque razão teria de deixar de passar agora!? Já a bordo da lancha e não conformado com o incidente, tentei ratificar o calado, o que não me foi possível devido à ondulação. Chegado a terra fui dar conhecimento do sucedido ao piloto-mor Francisco Rodrigues Brandão, que não estranhou da manobra efectuada com o ARION. No entanto, disse-me que não poderia deixar de comunicar à capitania.
Passados alguns dias, fui chamado ao capitão do porto e foi também o piloto-mor, para dar o seu parecer. O piloto-mor entrou para o gabinete do oficial adjunto da capitania e passado algum tempo saiu e disse-me vamos embora, porque já não é preciso prestar declarações. Ignoro qual fora o teor da conversa entre os dois.
Quando já tínhamos deixado a Capitania, veio o contínuo chamar-me para ir ao gabinete do oficial adjunto. Chegado ao gabinete e na presença daquele oficial de marinha, fiz o meu depoimento do incidente, dizendo que devido à situação da barra estar um pouco apertada próximo da Meia Laranja e havendo bastante corrente de enchente, que obrigava o vapor a desobedecer ao leme, além do navio ser bastante comprido e confiado no calado de água dado pelo imediato do vapor, pois já não era a primeira vez, que por lá passara, assim como outros meus colegas, baseados na enorme prática e saber, que possuíamos daquele lugar, que nos fora legado por velhos pilotos e mareantes da barra. O oficial adjunto do capitão do porto disse-me. Está certo! No entanto V. próprio, como piloto da barra, deveria ter ido verificar o calado de água do vapor e não confiar no imediato. Então eu retorqui. O imediato, em qualquer embarcação, tem um cargo de bastante responsabilidade e como tal, tenho de confiar nas suas informações e na sua competência. Além disso, acrescentei, que tanto eu como os meus colegas somos os autênticos técnicos de pilotagem do rio e da barra mas também pela nossa anterior actividade profissional nas pescas, temos a prática das manhas do rio e da barra e conhecemos o seu próprio fundo como as palmas das nossas mãos. Mais frisei, que em caso de necessidade e com embarcações de calado de água, que julgue suficiente voltaria a passar pelo Norte daquela bóia, sem qualquer receio. Então, aquele oficial adjunto disse-me, agora, certamente o capitão do porto vai apreciar o seu depoimento e, possivelmente V. irá ser penalizado com alguma repreensão ou mesmo castigo. O certo é, que se passaram vários meses e jamais fui chamado à capitania».

O "combi ship" ARION demandando o porto de Leixões em 13/12/1950 - (c) FotoMar, Leixões.

ARION, IMO 5518221, 90m/2.297tb; 09/1927 entregue pelo estaleiro Deschimag Werk AG Weser, Bremen, á DG Neptun, Bremen, que o colocou no serviço Ibérico; 1929 reconstruído; 1940 ao serviço da “Kriegsmarine”; 1940 entregue ao seu armador; 11/05/1945 bombardeado pela Força Aérea Aliada no rio Elba, sofrendo graves avarias; 1947 parcialmente recuperado; 1950 reparado e reconstruído como “combi ship” (motor e máquina a vapor);, tendo sido alongado para 96,7m/3.156tb, apresentando um novo perfil, retomando o serviço de Portugal e Espanha; 1957 motor removido; 1960 KARL RAGNAR, Lovisa Rederi (gestores A/B R. Nordstrom OY), Lovisa, Finlândia; 03/07/1961 chegava a Hamburgo para desmantelamento; Gémeo APOLLO.
Fontes: The Ships list, 100 Jahre DG Neptun - Bremen, Miramar Ship Index.
(Continua)
Rui Amaro

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